Interesse público x interesse do público: um dilema jornalístico?

Foto: Samara Costa
Foto: Samara Costa

A nova edição do Ciberdebates, evento realizado pela disciplina de Oficina de Jornalismo, intitulada “Interesse público x interesse do público”, abordou se os padrões estudados nas faculdades de jornalismo e os critérios de noticiabilidade da atualidade ainda são válidos.  O debate reuniu, na manhã de hoje, convidados e alunos para o debate que foi realizado no Auditório da Biblioteca da Unifor.

Os debatedores foram os jornalistas Rafael Rodrigues, professor do curso de jornalismo da Faculdade 7 de Setembro, Gustavo Negreiros, editor do Diário do Nordeste Online, e Hélcio Brasileiro, editor do portal Tribuna do Ceará.

Foto: Ravena Sombra
Foto: Ravena Sombra

O primeiro Ciberdebate do ano iniciou com a fala do professor e jornalista Rafael Rodrigues, que deu um enfoque mais teórico à questão. Ele afirmou que “o jornalista não se abstêm do seu papel de produzir a notícia, mas, ao mesmo tempo, ele tem de escutar o seu público leitor”. Além disso, Rafael enfatizou que o jornalismo não é mais homogêneo como era antes, o público diz e mostra o que quer saber, e é papel do jornalista pensar e ver se o assunto pode ser considerado notícia.

 Segundo o professor, os valores-notícia que são utilizados hoje são questionáveis, pois têm questões históricas envolvidas neles, sendo estes uns dos conceitos do que pode ser notícia. “O valor notícia é uma convicção que os jornalistas têm, eles têm que ser constantemente revisados”, ratificou.

O editor do Diário do Nordeste Online, Gustavo Negreiros, começou dizendo que a forma de fazer jornalismo está se modificando e que por isso “os critérios de noticiabilidade estão se tornando diferentes para cada tipo de meio de comunicação, pois os leitores buscam uma leitura diferente para cada veículo”. De acordo com ele, o que os jornalistas de hoje têm que saber é o que é importante para ser publicado, o que o público vai querer ler.

Foto: Farley Aguiar
Foto: Farley Aguiar

Hélcio Brasileiro, editor do portal Tribuna do Ceará, ressaltou que as empresas de comunicação online estão vivendo um dilema, pois as pessoas pararam de acessar os links, elas só leem as matérias pelo Facebook, por exemplo, em vez de ir para o portal, o que faz com que as empresas percam visualizações e, consequentemente, anunciantes. Após a fala dos convidados, foi aberta a participação do público para interagir com os convidados, tanto com perguntas pela internet, quanto com perguntas ao vivo.

O aluno do curso de jornalismo da Unifor, Hamlet Victor fala sobre a importância de se debater um tema que aborda o que é e não é importante como notícia. “Compareci ao evento por ser um tema bastante atual e que merece discussão. Com os portais de notícia cheios de assuntos totalmente irrelevantes, é preciso entender e buscar alternativas para melhorar o cenário do jornalismo atual”.

Texto: Lia Sequeira

[Retratos e Perfis] O grande amador

2012-11-04-16-34-021

Uma voz rouca pergunta quem está do outro lado da porta. Defronte ao apartamento 1002 e 1 hora de atraso, aquela entonação era mais do que plausível. Os dois repórteres resolvem se identificar. A porta enfim range a dobradiça até o fim, os olhos fitam a sala profusamente mobiliada. Sem pisar na varanda vê-se boa parte do bairro Cocó, as matas regurgitando de prédios, empreendimentos por fazer e o rio famoso coberto de folhagem.

Seu Osvaldo, filho do veterano dos gramados, pede que esperem o entrevistado na sala, “vou chamar o papai, mas fiquem a vontade pra ir na varanda”.Ouve-se um passo vagaroso saindo do quarto aos fundos, morre na sala, junta-se aos repórteres. O pedaço de história para entre dois móveis, pousa um olhar arisco, a sobrancelha em pé. Resolve estender uma mão ossuda e apertam-na em cumprimento. Os sorrisos largos e satisfeitos desarmam o velho, a retribuir o gesto. Postados naquela sala, ambos o reconhecem: José Cândido Silveira Fontenele, o Zé Cândido dos gramados, atleta mais velho, ainda vivo, a ter pisado no Estádio Municipal Presidente Getúlio Vargas, o revigorado PV. “Os outros já morreram. Restou só eu mesmo”, caçoa do tempo.

Aos poucos se sente mais a vontade, com jeito de anfitrião, suspende o braço e convida-os a se acomodar no sofá. Afundam relaxados. Seu Zé Cândido prefere a cadeira antiga de madeira envernizada, mal acolchoada. “É tão velha quanto eu”, brinca. Mas duvida os rapazes ter o assento mais que seus 90 anos, embora conserve boa aparência assim como o velho guarda a lucidez.

Presos a vida do entrevistado, descobrem que conversar com Zé Cândido é entrar no túnel do tempo de uma Fortaleza amadora. De seus avós, possivelmente. Quando desembarcara ainda muito menino em Fortaleza, escorregado da Serra da Ibiapaba, do município de Viçosa do Ceará, conhecera através do tio Chico Ponte, fanático apostador de corridas de cavalo, o futebol amador que lhe traria reconhecimento e fama, entre as décadas de 1930 até 1950.

O prestígio de Zé Cândido conviveu nas manchetes dos jornais da época, e através dos quais ainda resgata a sua vida para qualquer um, devido a dúzia de portfólios bem organizados com notícias que, reunidas, contam a trajetória dele no futebol. Páginas amareladas, fotos escuras e textos pomposos. Tudo tem Zé Cândido.

No decorrer da entrevista, o mesmo senhor orgulhoso da placa recebida em homenagem aos anos dedicados ao futebol, na ocasião da reabertura do PV em maio de 2011, hoje repousada na estante da sala, não se limitou a recordar apenas histórias do futebol amador. Além da placa, seus pés e mãos eternizaram-se na Calçada da Fama do PV.

Nos bastidores e na conversa com os repórteres, Zé Cândido se emocionou com aquela Fortaleza lenta e bucólica do seu tempo, dos carros imensos, avenidas largas, passeios repletos de grupos de meninas, das tertúlias, as passagens pelo exército, a guerra contra a Alemanha de Hitler, o comportamento dos contemporâneos diante do esporte amador em comparação as torcidas organizadas de então, em tempos profissionais; e, sobretudo, as camisas por que jogou e os campos por que atuou.

Conta histórias deliciosas. Como quando foi presidente, treinador e jogador, ao mesmo tempo, do Gentilândia, time que por mais tempo atuou. “Nunca ficava no banco, me escalava sempre (risos)”. Além dos causos de sua trajetória, de 1936 a 1950, ano da aposentadoria dos gramados, após vestir as camisas do Fortaleza (categoria de base), Ginásio São João, Maguari, Peñarol, Ceará, América, Fortaleza e Gentilândia.

Dois times lhe marcaram a carreira: Fortaleza e Gentilândia, o saudoso esquadrão extinto. Mas somente um lhe arrebata o coração até hoje e para sempre: “meu Fortaleza, meu Tricolor de Aço”. A família Fontenele, a bem da verdade, herdou a mesma paixão. Sua irmã, a famosa Tia Marisinha, “mascote” do Fortaleza, com os mesmos 95 anos do tricolor; Airton Fontenele, primo, pesquisador do esporte cearense e ilustre torcedor do Leão; o filho Osvaldo Fontenele, ex-dirigente do Fortaleza e fundador da primeira torcida organizada da capital.

Mudanças do futebol amador à era profissional, feitos históricos, craques do futebol cearense da época, os orgulhos da carreira e as decepções. Abaixo, entrevista com o polivalente dos gramados, goleador Zé Cândido.

Seu Zé Cândido, como o futebol entrou na sua vida? O senhor pensava em ser jogador de futebol quando pequeno?

O futebol entrou na minha vida desde criança. Quando morávamos em Viçosa (do Ceará), nós tínhamos um piano em casa, que era da minha tia. Como ela morava em Fortaleza, no colégio interno Imaculada Conceição, subia a serra só nos finais de semana. E meu pai queria que eu aprendesse a tocar à força. Mas o que eu queria era jogar bola (risos)… Eu fugia de casa desde criança com a meninada, para estar nas ruas. Nesse tempo não existia lugar próprio para a prática, a não ser as praças. Fugia da aula de piano para praticar futebol.

Já em Fortaleza o senhor conhece, finalmente, o futebol amador…

Quando eu cheguei aqui em Fortaleza meu pai me colocou no colégio Ateneu São José, que depois se chamaria Colégio São José. Ele ficava ali defronte o Parque da Liberdade. Lá eu comecei a treinar futebol. Havia um campinho pequeno em frente ao Passeio Público…. Posteriormente, como morava na Praça do Carmo, fiz amizade com vários garotos que gostavam de futebol – Capotinho, Pintado, Dudu, Tulí. Começamos a jogar no patamar da Igreja do Carmo (antigamente a imagem de Nossa Senhora não era ali no patamar como é hoje, não). Depois passamos a jogar na Praça da Bandeira, vizinho onde está hoje a Faculdade de Direito da UFC. Nós, então, resolvemos montar um time. Ele recebeu o nome de Oriente do Nordeste, e a minha tia, irmã da minha mãe, desenhou nas camisas as palavras “O” e “N”. Esse time, por sua vez, não tinha jogado contra ninguém, mas um dia, um de nossos amigos conseguiu levar o time para jogar na Gentilândia (nunca tinha nem ido nessa tal Gentilândia).

Conheci o Murilo Parente, Raul Araújo, Walter Araújo, Mosquito, Pijuca, Seal (todos jogadores amadores de fama, na época). Perdemos para esse time de 8 a 1, aí quando chego em casa as duas horas da tarde… Eu morava na rua Senador Pompeu, entre a avenida Duque de Caxias e a rua Clarinda de Queiroz, meu pai já tinha ido na Assistência Social e na Polícia, atrás de mim. Não sabia onde eu estava e nem sinal de vida na hora do almoço. Aí além de apanhar de 8 a 1 ainda levei uma surra do papai (risos).

O senhor se lembra da primeira escalação de um time em que o senhor participou, nesses jogos de várzea?

Não me lembro. Mas depois que entramos no Ginásio São João, em 1934, fiz amizade com novas pessoas que gostavam de futebol. Um deles era Oscar Magno Carvalho, que jogava no juvenil do Fortaleza, cuja sede era próximo a Praça da Bandeira. O campo ficava ali entre a rua General Sampaio e a rua Tristão Gonçalves. A convite do Magno fui para o infantil do Fortaleza, onde em 1936 participei do primeiro campeonato oficial organizado pela Associação Desportiva Cearense (ADC), hoje Federação Cearense de Futebol (FCF).

Eu percebo que o senhor tem muitos recortes de jornais das décadas de 1930, 1940 e 1950. Qual a importância da imprensa…

A imprensa era muito pequena. Havia o Miguel Floriano Sales, do Jornal Unitário, depois Blanchard Girão; Zé Barreto, da Gazeta de Notícias… Mas não havia muitas notícias, nem televisão, nem rádio. Era muito pouco divulgado o futebol. Entre as minhas amizades conheci esses três cronistas.

Hoje o futebol move cifras incalculáveis. Mas naquela época, como se dava essa questão financeira, quando se trocava de um clube para o outro?

(risos) Ninguém ganhava nada! Muito pelo contrário, a gente tinha que comprar chuteira. E isso desde criança, pelo infantil. Aliás, o campeonato infantil de 1937 foi ganho pelo Fortaleza (e eu ainda tenho a escalação desse time na cabeça: Farinha D’Água; Sófordi, Pirulito II, Rolinha e Vinte e Oito; Nenéu II, Gargarú, Diefei, Zé Cândido, que sou eu; Pedrinho, Válder Luís e Hélio Parente)…

A seu ver, a profissionalização trouxe algum tipo de mal ao jogo de futebol?

Hoje em dia se perde três ou quatro jogos, mandam logo o técnico embora. Tá errado! Outra coisa era que aqui no meu tempo quando se ganhava, você rachava um “bicho”. Não existia ordenado para jogador, como hoje. Lembro que ao passar para o segundo quadro não tínhamos o time bancando nada, sequer nossas chuteiras. Sabíamos o valor da vitória e da derrota. Era por amor. Contratar jogador de fora? Muito raro.

Em 1938, Capitão Juremí Pires de Castro, um gaúcho, assumiu a presidência da Associação Desportiva Cearense. Capitão do Exército e diretor do Colégio Ginásio São João, o mesmo em que eu estudava. Esse homem impulsionou o futebol daqui, trazendo vários times de fora. O Bahia, por exemplo, veio aqui. O Palestra Itália [ atual Palmeiras] também, em 1938…

O senhor tem uma história curiosa enquanto esteve no Gentilândia, clube por onde mais atuou.

Pois não. Foi no Gentilândia que marquei história no futebol cearense, até hoje. Em 1950, fui ao mesmo tempo, presidente, treinador e jogador (risos). Fiquei muito conhecido por isso (risos). Nunca ficava no banco, me escalava sempre (risos).

Desses tempos, o senhor pode citar mais curiosidades engraçadas, além de sua passagem pelo Gentilândia?

Uma vez a delegação do Gentilândia foi a Sobral, mas antes paramos em Itapajé para almoçar. Estávamos sentados à mesa e um jogador nosso, o Barbosão, pegou a toalha da mesa e limpou a boca. A senhora que estava servindo a gente viu aquilo e disse: ‘O falta de educação’. E o Barbosão respondeu: ‘Falta de educação, não. Falta é de guardanapo’. (risos) Outro fato interessante

E quais foram as amizades mais marcantes no futebol?

A primeira amizade mais marcante foi com Raimundo de Paula Filho, o Raimundinho, tio do então cronista Tom Barros. Ele era o técnico do Peñarol, em 1940 e 1941. Eu o apresentei a uma moça rica. Lembro que lhe disse: ‘Raimundinho, vou arranjar uma mulher pra você, pra pagar suas contas’. Ele concordou, mas não deu certo com a que eu gostaria de tê-lo apresentado. Ele acabou casado com a amiga dessa moça (risos).

Além de Raimundinho, algum jogador?

Hildebrando Maia, grande craque cearense de todos os tempos e o melhor batedor de pênalti do Estado do Ceará. Pelos anos de 1931 e 1932 tinha sido contratado pelo São Cristóvão, do Rio de Janeiro.

O senhor pode fazer um apanhado de acontecimentos em sua carreira, pelos times onde atuou?

Foram oito times. Comecei nas categorias de base do Fortaleza, depois fiquei no Ginásio São João até me formar (por que o Ginásio resolveu se federar na ADC). Eu me formei e fui para o Maguari, lá joguei num timaço. Alcir; Sirino, Gambetá, Tancredo e Aripe; Valter, Mamede, Jandir e Luizinho; Matuca e Bacurím. Grande time. Aí fui para o Peñarol, e comigo houve uma coisa interessante. O Peñarol, clube que ficava vizinho a Igreja de São Gerardo, era dirigido pelo técnico Dr. Ribeiro. Esse senhor se desentendeu com a diretoria do Peñarol e mudou-se para o Ferroviário, levando consigo os melhores jogadores do Peñarol (Capotinho, Zé Sérgio, Marcos, Chaguinhas, Jombrega, Marreco, e outros mais).

O Peñarol ficou quase sem time para jogar. Em contrapartida, o Raimundinho, presidente, conseguiu trazer cinco jogadores do 2º quadro do Maguari para formar o elenco de 1940, entre esses jogadores estava eu, e assim ingressei no Peñarol. Em 1942 recebi um convite para jogar no Ceará. Nesse tempo as transações já valiam dinheiro, e o presidente de lá era um despachante, Dr. Antônio Tibúrcio da Frota, ele acordou que me daria 1 conto de réis de luva, e 200 merréis por mês. Dava 500 merréis na hora, e mais 500 com trinta dias.

Eu era muito magro, franzino, tinha 1,67 metros e pesava 49 quilos. Encontrei um técnico de ponta, Jaime Guimarães, contratado para ser o treinador do ano no futebol cearense, e um dos treinos era carregar um companheiro nas costas… Andar 100 metros com um jogador nas costas. Eu não aguentava! (risos) Nessa época, o Raimundinho passou a ser técnico do Peñarol, e me chamou de volta prometendo que iria fazer um grande plantel, com jogadores da Seleção Cearense. O que o Ceará me deu, eles bancavam e ficaria tudo bem. Passei 1 mês no Ceará (risos) Voltando ao Peñarol, fizemos um time bom, ganhamos várias partidas… Até que o América apareceu. O presidente Dr. Ubirajara tinha muita sede de me ver no América, pois antes do Peñarol, em 1940, já era para eu ter ido jogar lá, se não fosse a amizade que eu tinha com o Raimundinho. Em meu primeiro jogo, o América perdeu de 4 a 2 para o Fortaleza, e eu fiz os dois gols de consolação. Depois fui para o Fortaleza, foi quando fiz o jogo mais importante da minha vida…

Essa era outra pergunta. Qual foi o jogo mais importante da sua vida?

Bem, o time da Seleção Cearense ía enfrentar a Seleção Maranhense. Como jogos de preparação, a seleção havia enfrentado o Ferroviário e a partida terminou 8 a 1 para o selecionado, contra o Ceará venceu de 5 a 1, mas no 24º aniversário do Fortaleza, a seleção nos enfrentou e perdeu de 2 a 0, gols de Estênio. No outro domingo houve a revanche e saiu 2 a 2, para provar que o time não era fraco.

Continuando, e depois do Fortaleza?

Fiquei no Fortaleza até 1943, quando fui convocado para o Exército e estava certo de que ía para Recife. Já treinava para servir nas trincheiras da Europa e lutar contra a Alemanha de Hitler. Naquele tempo, uma pessoa normal e sadia tinha que ir, mas foi também quando descobri, depois de um treino, que tinha uma doença e não pude servir. Adoeci, fui julgado incapaz e não viajei a Recife. Parei de jogar futebol. Quase três anos depois, em 1946, enquanto tomava café na Praça do Ferreira, num Café conhecido por ali, entre as ruas Guilherme Rocha e Floriano Peixoto, encontro meu amigo Armando Pinheiro, com quem joguei no Ginásio São João, Maguari e Peñarol. Ele disse: ‘Rapaz, vamos assistir o treino do Gentilândia, ali no quartel do 23 BC, na avenida 13 de Maio. Tem o Artur Fontoura, Ossian, Zé Mário, Mamede’. Eu pensei: ‘Eu lá quero alguma coisa a mais com futebol! Já chega!’. Mas eu tinha uma caminhonete e fui bater lá. Quando cheguei o time já estava treinando e o técnico Jandir Machado, irmão do Juraci Machado, chamou: “vamos treinar, vamos”. Daí eu disse: “rapaz, eu não estou nem com chuteira, nem nada. Vim foi tomar café”. Ele me arranjou um uniforme e fui treinar. Depois o técnico me disse que fui o melhor jogador do treino, e me convidou para jogar no Gentilândia, que ia viajar naquela semana para uma partida em Limoeiro do Norte. Eu aceitei, retomei a vida de jogador em 1946. Fico até 1950 no Gentilândia, e termino minha vida no futebol com 28 anos, quando eu me casei.

E quando passa a ser técnico do Gentilândia?

Em 1950, quando fui eleito presidente também (risos), e ainda jogava no amador mesmo o time estando na Primeira Divisão, ou seja, campeonatos a parte, nada profissional. Técnico, presidente e jogador!

Quais as características principais no futebol do Zé Cândido?

O chute, em primeiro lugar, pois eu aprendi desde criança no Fortaleza infantil. Lá o técnico, atrás do gol, nos fazia treinar chutes de todo jeito. Chutava muito bem. Cabecear também, eu cabeceava bem. Driblava na velocidade, por ser leve e rápido.

O senhor se lembra quantos gols fez na carreira?

Não me lembro, não (risos). Era um centro-avante de área, sabe… nem sei se cheguei a ser um dos artilheiros nas décadas de 1930 e 1940.

Qual o gol mais importante que já marcou?

Foi em 1940, 1 mês depois de uma vitória histórica do Peñarol contra o Ferroviário (4 x 3, contra o melhor time cearense da época), que eu considero a maior zebra do futebol cearense, do século passado (XX). Chegou aqui um general que iria comandar a região na época da guerra (Segunda Guerra Mundial), e resolveram fazer uma partida a noite em homenagem a ele. Aliás, foi um torneio. E caiu de novo um jogo entre Ferroviário e Peñarol. Nessa ocasião fiz um gol muito importante para mim, e também o mais bonito da minha vida, porém quase não o vi (risos). Foi um gol lindíssimo. Do lado esquerdo, o Mario Dias dá uma puxada e corta o zagueiro, vai até a linha de fundo e cruza para fora da área. Eu estava no semi-círculo. O zagueiro esperava que eu matasse a bola, para avançar em cima de mim. Aí eu resolvi emendar a bola no ar, de voleio, com a canhota. Quando estou caindo no chão ouço das arquibancadas um grito de “gooooollllll”. Eu me viro rapidamente e vejo a bola morrendo lá no ângulo, e quase não via (risos). No dia seguinte o jornal disse que “o único gol do Peñarol foi feito espetacularmente por Zé Cândido, com um tiro inesperado e indefensável”. Foi o maior gol que fiz na minha vida e eu quase ‘num’ via (risos). Em 1948, pelo amador do Gentilândia, cheguei a ser artilheiro do campeonato cearense com 18 gols.

E qual foi a maior tristeza do senhor, no futebol?

A minha maior tristeza foi perder um pênalti (os olhos vermelhos, emocionado). No aniversário do Peñarol, lá no Alagadiço, houve um jogo contra o Maguari. E o Peñarol nunca chegou a “dar” no Maguari… Existia essa despeita muito grande, pois ambos eram clubes de sociedade, onde havia festa, sinuca… Nem Fortaleza, nem Ferroviário, nem Ceará, nunca tiveram sede social. Então o Maguari foi jogar lá, numa manhã de domingo, em nossas dependências. O jogo estava 2 x 2, e teve um pênalti a favor do Peñarol. O goleiro Osíris, que andou jogando até no Náutico de Recife, vinha com uma mania de pular todo para um lado. Essa invenção no futebol cearense começou depois que o Osíris voltou pra cá. Aí eu perdi o pênalti, ele caiu no lugar onde eu chutei a bola. Foi a grande tristeza que eu tive. Perdi o pênalti que talvez nos desse a primeira vitória da história do Peñarol, em cima do Maguari.

Seu Zé Cândido, o que o Fortaleza significa na sua vida?

O Fortaleza significa pra mim… É o time que eu quero “mais bem”, sabe. Desde criança comecei a gostar, a gente jogava bola no infantil, no aspirante e cheguei a jogar no primeiro quadro. Cheguei a ser diretor do Fortaleza! E não foi só uma vez! Fortaleza é um time muito querido. Eu nunca me esqueço do tempo em que estive lá. Do Mozart, grandes amizade que fiz por lá. Outros amigos: Jaburu, Corado, Durrú, Aníbal, Fred, Carinha e João César, que eram irmãos. João césar, inclusive, um dos fundadores do Colégio Farias Brito.

Outros membros da família Fontenele também seguiram uma trajetória no futebol, muito próximos ao Fortaleza. Queria que o senhor falasse disso.

Minha irmã, a Marisa (Tia Marisinha), “mascote” do Fortaleza. Tem a mesma idade do time: 95 anos. (risos) meus filhos querem um bem danado ao “Tricolor de Aço”. O Osvaldo foi diretor de lá, presidente da Garra Tricolor, na época em que só existia ela como torcida organizada e tinha a mesma força que a TUF (nome da principal torcida organizada do Fortaleza) tem hoje. Meus netos tentam resgatar uma antiga torcida, a “Fiel Tricolor”, que apóia o time, mas não como a TUF. É algo mais civilizado e tradicional.

E quanto à placa que o senhor recebeu em 2011, na reinauguração do PV? Gostaria que falasse sobre a sua emoção.

Eu achei que foi muita bondade, porque jogadores de nível muito superior ao meu teve vários, só não estão vivos. Além disso, ainda pus meus pés na Calçada da Fama do PV. Imagina! (risos) Eu fui um bom jogador, tive a sorte de participar de campeonatos cearenses da Primeira Divisão, por vários anos. Achei que eles foram muito bondosos e atenciosos em me conceder uma homenagem dessas.

Qual a diferença do futebol de hoje para o futebol da sua época?

A diferença é primeiro no amor. O jogador não tem o bem pelo clube como tinha antigamente. O jogador que era Ceará, era Ceará pelo resto da vida. Aconteceu comigo um problema interessante: a primeira vez que fui ao Campo do Prado, onde se jogava futebol e havia também corrida de cavalo, e que hoje é o IFCE, fui com o tio Ponte. Ele me disse: “eu vou ver as corridas e você vai assistir as partidas de futebol”.

Como o senhor percebe a presença das famílias hoje nos estádios, em face do que se tinha no seu tempo?

É muito simples, vou já te explicar: no “Prado velho”, só havia um banheiro grande, com várias cabines para tomar banho. Nós tomávamos banho depois do jogo, com os jogadores do outro time. A torcida podia passar por ali também. Às vezes me banhava ao lado do zagueiro que me marcou o jogo todinho. Existia muita paz nos jogos de futebol. Não existia separação de torcida. Hoje existe e isso é o maior perigo do mundo. Eu quase não vou a jogo, e quando vou não uso camisa do Fortaleza, com medo de sofrer alguma agressão. Não existe comparação, torcidas do meu tempo chegavam juntas no estádio.

O senhor não enriqueceu com o futebol, então o que fez longe dos gramados?

Trabalhei muito. Na Casa Silcar por quase 40 anos, trabalhei também na Cequip, uma firma de tratores, cerca de oito anos. Passei minha vida trabalhando, nunca a custa de futebol. Pelo contrário, quando era presidente do Gentilândia empreguei vários jogadores na Silcar. Tentei fazer o bem a esses rapazes, ensinando um ofício para eles.

Qual a importância do futebol na sua vida?

Pra mim… Não passo um dia sem ver um jogo de futebol na televisão, nem que sejam partidas de equipes do exterior. Tenho ido pouco ao estádio devido a essa situação violenta em que se encontra a população. O futebol pra mim é tudo. Guardo os recortes das matérias de futebol do meu tempo, com todo carinho. Quando chega um amigo eu mostro, eles ficam admirados.

Nos dias de hoje, qual jogador se assemelha mais com o seu futebol?

… Nem sei os nomes dos jogadores de hoje, meu filho.

Qual o melhor gramado que o senhor já jogou?

Estádio dos Aflitos, em Pernambuco. O estádio do Náutico.

Texto: Jefferson Passos e Celso Nóbrega

[Retratos e Perfis] Do interior do Ceará para o mundo

Foto: Acervo pessoal
Foto: Acervo pessoal

Qual o tamanho do desafio que você pode aceitar? Para muitos essa pergunta vem acompanhada de medo e incerteza sobre a responsabilidade da temida missão a ser encarada. Para o educador físico Gláucio de Oliveira Castro, falecido em novembro de 2006, sua vida foi ilustrada de inúmeros desafios e superação.

Nascido no interior do estado do Ceará, na cidade de Morada Nova, Gláucio, filho caçula de Francisco Castro e Tereza Castro descobriu desde cedo a paixão pelo esporte e, como quase toda criança, o talento pelo futebol.

Definido por amigos e familiares como um cearense que nunca perdeu as origens, Gláucio fazia questão de levar o nome do Estado por todos os lugares do mundo que ele estava. O filho ilustre de Morada Nova teve que deixar sua terra natal na adolescência para estudar em Fortaleza.

Graduado em Educação Física pela Universidade de Fortaleza (Unifor), Gláucio foi jogador de futsal e defendeu clubes Sumov, Banfort, Trilhoteiro (RS), tendo passagem também pela Liga Espanhola de Futsal. No seu vasto currículo de títulos, o de campeão brasileiro juvenil na I Taça Brasil promovida pela Confederação Brasileira de Futsal (CBFS) foi um dos mais marcantes da sua carreira. Como adulto, ele foi campeão brasileiro adulto jogando pelo Sumov, Banfort e seleção cearense.

Responsável por alavancar o futsal cearense no cenário nacional, Gláucio disputou o campeonato mundial de Futsal em 1988, na Austrália. Bom de bola e sempre buscando o aperfeiçoamento intelectual fora das quadras, o cearense de Morada Nova logo após encerrar sua carreira como jogador decidiu ser treinador de futsal.

O talento de Gláucio para comandar foi a grande marca da sua carreira. Técnico de vários clubes no Brasil, a sua competência para conquistar títulos ficou marcada nos estados do Ceará e Rio Grande do Sul, onde conquistou os respectivos títulos estaduais. Liderou times de grande visibilidade, como o Carlos Barbosa, o Minas Tênis Clube, Sumov e UCS.

Assumiu as seleções de base do Brasil e foi auxiliar técnico da principal ao lado de Fernando Ferreti. Sagrou-se bicampeão Sul Americano Sub-20 (2002 e 2004) e campeão do Mundialito Adulto, em 2002, na Itália, vencendo a seleção brasileira adulta na final por 3×1.

Em seus últimos anos de vida, além de treinador Gláucio ministrava cursos e palestras de capacitação em todo o país e até mesmo no exterior. Escreveu um livro sobre as relações de um técnico com as pessoas que constituem seu ambiente do trabalho, intitulado “Perfil de um Treinador no Mundo Globalizado”. Livro este contendo depoimentos de estrelas do esporte como o jogador Falcão, o técnico Fernando Ferreti e o técnico de voleibol Bernardinho. Iniciou outro trabalho sobre táticas e técnicas do futsal, que foi interrompido pela fatalidade de seu falecimento e segue inacabado.

Alçando novos vôos e aceitando desafios

A pergunta feita acima sobre qual o tamanho do desafio que você poderia aceitar foi respondida facilmente pelo professor Gláucio. Após receber o convite do Governo da Tailândia para implantar o Futsal no país, ele não teve medo do desafio e “simplesmente” aceitou. Novo país, nova cultura, novo idioma. Para alguns, isso poderia tornarem-se fatores determinantes para desistir, mas o filho de Morada Nova provou que é possível fazer asiático ser bom de bola e bom no futsal.

No primeiro ano do projeto na Tailândia, Gláucio ajudou o time a se classificar para o mundial e levou a Seleção Nacional da Tailândia a ser Campeã Asiática de Futsal.

Dizem por aí…

“Nos deixou nesta semana, mudando-se, por gosto de Deus, para sua morada no oriente eterno, abrindo uma enorme lacuna nos corações dos salonistas brasileiros e mundiais, já que reverenciado mundialmente pela sua lisura, capacidade, amizade e respeito aos compromissos que assumia. Todos reverenciaram a pessoa de Gláucio de Castro. Com 46 anos de vida e relevantes serviços prestados ao país, Gláucio de Castro merece, pelo menos, um muito obrigado por parte da Confederação Brasileira de Futsal.” – Carlos Bittencourt – Ex funcionário da Confederação Brasileira de Futsal

“É muito difícil ainda saber que o Glaucio não está conosco. Porém, nunca me esqueço dele, pois tenho diversas camisas que ele me deu e que são as mais bonitas” – Lúcio Bonfim – Ex secretário de esportes

“Meu carinho a você é a verdade presente, dentre os amigos que tive, embora por pouco tempo, o Gláucio foi amigo, parceiro, confidente e sonhador, aprendi com ele que a vida vale a pena e que o social não é apenas pra ser visto pela TV. Valeu Gláucio!” – Marcondes Rodrigues – amigo e companheiro do futsal

“A coluna hoje é dedicada a sua memória. Ele teve três paixões na vida: a família, a cidade Morada Nova e o futebol de salão. Como craque chegou à Seleção Brasileira e como técnico também, dirigindo a Seleção Sub 20. Foi ele o fundador e o criador do Curso de Formação de Novos Técnicos, que se iniciou no dia 9/12 passado e é em sua homenagem. Obstinado, teve nome internacional quando jogou na Espanha e foi treinador da seleção nacional da Tailândia. Professor de Educação Física, lançou um livro e jogou futsal no Rio Grande do Sul.”- Coluna do Silvio Carlos – Jogada – Diário do Nordeste, 13 de dezembro de 2010. Amigo, companheiro do futsal e presidente da Federação Cearense de Futebol de Salão

“Leal, solidário e extremamente humano, era de uma simplicidade que impressionava. Viveu a vida rindo e não guardou ódio de ninguém. Parecia um menino, tal a grandeza de caráter e a personalidade da educação forjada e alicerçada no amor aos pais Teresinha e Chico. Casado com Liliane de Castro, que continua na luta e coordena o curso que se realiza no FB.” – Coluna do Silvio Carlos – Jogada – Diário do Nordeste, 13 de dezembro de 2010. Amigo, companheiro do futsal e presidente da Federação Cearense de Futebol de Salão

“Falar do Gláucio me faz sentir sua presença. Conheci-o nos jogos universitários em Minas Gerais em 1982 e começamos uma paquera que logo se tornou um relacionamento de 23 anos. Sempre senti seu amor por mim e por nossa família. Ele foi uma pessoa carinhosa, paciente (também com 5 mulheres na sua vida, rs). Companheiro, espirituoso, desligado, relaxado. Profissionalmente, era dedicado a sua carreira, estudioso, positivo, vitorioso, zangado, tempestivo. Acho que o Gláucio não pertencia a este mundo. Possuía um carisma que nem ele sabia. Descobri o quanto ele era amado e respeitado pelas conversas e encontros que tive com pessoas depois de sua morte.” – Liliane Benício – esposa.

Texto: Luana Benício e João Bandeira Neto

[Retratos e Perfis] Maísa Vasconcelos: uma comunicadora por excelência

 

Maísa é conhecida por sua imagem de mulher firme e decidida. Foto: Divulgação
Maísa é conhecida por sua imagem de mulher firme e decidida. Foto: Divulgação

“Mulher sempre muito determinada e inteligente, tímida, de poucos amigos, como é muito reservada às vezes parecendo até antipática, não é popular, não é farrista, de poucos namorados”. Mailma de Sousa, irmã

Impulsiva de constantes sobrancelhas elevadas ao ser contrariada, porém sempre carregando um vasto sorriso, assim se constitui Maísa em suas peculiaridades e traços faciais. Jornalista, mandona, radialista, decidida, apresentadora de TV, mulher de personalidade forte. Do interior de Itapipoca (Matinhas) amparada pelas tradições do lugarejo cearense migrou com a família para Fortaleza logo ao completar um ano de idade. A cidade que a acolheu e lhe mostrou caminhos que apontavam para a comunicação.

“E a Maísa sempre foi a mandona, a coordenadora da guanguesinha. E quando as coisas não davam certo, a gente apanhava (e todos tinham que apanhar, era a lei lá em casa), a Maísa era como se fosse nossa líder”. Mailma de Sousa, irmã.

Desde 1989, atua em Rádio e Televisão. Durante dezesseis anos esteve à frente do programa Na Boca do Povo, da TV Jangadeiro, afiliada do SBT no Ceará. Antes, foi apresentadora de telejornal e de programas culturais na TVE, hoje TVC. Em rádio, trabalhou na Pajeú FM e, em seguida na Casablanca FM. Mais recentemente, editou o caderno “Viver”, sobre saúde e bem-estar, para o jornal O ESTADO. Blogueira desde 2002, edita o blog “Maísa na Blogosfera” e é atuante nas redes sociais . Fez parte do time de apresentadores da TV Jangadeiro, da TV Diário, e agora está na Nordeste TV.

maisa 2Ao perguntarmos sobre seu nascimento, Maísa sorri e com grande entusiasmo diz que nasceu em Matinhas, em Itapipoca, lugarejo muito tranqüilo e de clima bem quente. “Era de rachar aquele sol (…)”.

Dizem que você é mandona desde criança. Você é mesmo? Lembra de algum fato que possa mostrar isso?

Ah, eu não acredito que ela me entregou [ sorrindo]. Sim, é verdade sempre fui meio mandona mesmo. Eu era como se fosse a coordenadora da ‘ganguesinha’. E quando as coisas não davam certo, a gente apanhava e todos tinham que apanhar era a lei lá em casa e eu, mesmo sendo como se fosse a líder de meus irmãos, também sobrava pra mim. Apanhava também.

Como foi a infância com a família?

A gente não podia brincar na rua porque nossos pais não deixavam, éramos sete irmãos, quatro mulheres e três homens. Eu era a segunda mais velha. Brincávamos mais no quintal de fazer guisado, brincava de casa e do que tinha. Não gostava de brincar de bonecas, preferia brincadeiras de meninos como: pião, bila – era meio menino mesmo -, ‘três-três-passará’, pega-pega e um pouco maior brincava de escritório.

Falta de tempo para a família?

Realmente mau tenho tempo para ficar com a família. Trabalho a semana toda e, como não gosto de acordar cedo, apesar de trabalhar pela manhã, nos finais de semana só acordo depois do meio dia [Diz, com os olhos cheios de lágrimas].

E o primeiro neto?

Foi muito engraçado quando eu fiquei sabendo que ia ser avó [respira fundo].

Soube que ia ser avó no dia do meu aniversário, quando já estava me preparando para virar mochileira. Quando meu filho chegou com a namorada, uma mocinha pequena, de olhar tímido, de cabeça baixa e disse: ‘ mãe tenho uma coisa para te dizer”. Quando ele falou isso, desabei no choro. Meu coração já me dizia que se repetia o que há tempos atrás havia acontecido comigo: ela estava grávida. Meu filho ia ser pai… Passei três dias trancados no quarto chorando e, quando sai, já fui logo chamando a moça para vir morar conosco.

O Caio hoje já está com quatro anos e ele é muito grudado em mim. Certa vez ele falou uma pérola que nunca mais esqueci: “Vovó peixes não tem pálpebras, e ainda dormem”

E como era na época de estudante?

Sempre estudei com minha irmã Mailma, mesmo ela sendo mais velha. Eu era morena e ela era loira. Lembro-me que, quando eu já estava no colégio, várias foram as vezes que minha mãe me deixou junto a Mailma na sala de aula dela. Eu era muito nova e não tinha idade para estudar ainda, mas como meus pais não tinham onde me deixar ficava lá com ela. Certa vez a professora fez um pergunta na sala e só eu soube responder, desde esse dia a professora disse que meus pais já poderiam me matricular na escola, porque mesmo eu sendo ainda muito nova já entendia e acompanhava todo o assunto escolar com naturalidade.

Como era a sua relação com seus irmãos?

Éramos inseparáveis, eu e a Mailma, principalmente, muitos achavam até que éramos gêmeas, nossos pais costumavam vestir todos nós de forma parecida. Agora com meus outros irmãos tínhamos alguns probleminhas, porque como eu sempre tive um gênio muito forte e minha opinião é que tinha que prevalecer sempre, discutíamos por muitas vezes, mas era coisa momentânea logo fazíamos as pazes. Sempre fui uma aluna de boas notas, sendo que nunca gostei de estudar quando estava em casa, gostava de prestar a atenção nas aulas e só tirava notas altíssimas. Inclusive teve uma vez que cinco de nós pegamos sarampo e eu, mesmo doente, fingi estar boa para poder ir para o colégio, simplesmente adorava ir para a escola.

Na adolescência, ocorreu algum fato que você tenha ficado desnorteada?

Sim, quando completei 18 anos descobri que estava grávida e o pai da criança, meu namorado, tinha 15 anos. Foi um escândalo na cidade, tanto por minha família ser muito rígida e tradicional como também porque a mãe do meu namorado o expulsou de casa e me acusava de ter seduzido ele, porque eu já era maior de idade e ele ainda era um adolescente. Costumo dizer que namorava sentada no passado e as pessoas sempre pedem para eu explicar. Aí eu explico: porque meu pai ficava ouvindo tudo, se rolasse uns beijos mais barulhentos ele já ia lá acabar com isso. A gravidez, e tudo isso, foi muito decepcionante para meus pais que tinham em mim a pessoa mais responsável da família.

E como lidou com a decepção que os pais sentiram de você, sua mãe Idinha?

Foi bem difícil, porque a mamãe logo disse: você que sabia tudo do mundo, você não sabia como evitar a gravidez? Além do que, como eu não quis casar, piorou ainda mais tudo.

A Maísa como Universitária, como era?

Eu fiz Arquitetura, praticamente morava no pátio da Arquitetura, saia 6h30 voltava 22h. O Falcão (cantor) ficava de babá do meu filho na cantina da faculdade e, como foi ficando pesado pra mim, em 1985 acabei abandonando o curso de Arquitetura. Mesmo lá na Arquitetura já participava de movimentos estudantis, nunca fiz parte de partido político porque tinha medo da repressão. Era “Prestista”, seguia Luis Carlos Prestes, embora não fosse do partido. Tinha visão pragmática diferente das outras pessoas. Sempre frequentei Congressos, palestras, estive presente na invasão da UFC dentro do cordão de frente de isolamento e foi daí que vi que tinha tudo haver com a Comunicação.

E como é a Maísa profissional?

Sou radialista de formação, fiz curso no Sindicato dos Radialistas, inclusive, na época, já estava casada pela segunda vez e trabalhando com produção (eventos). Era uma época muito rica em Fortaleza, era na época da Prefeitura da Maria Luisa, tinha uma secretaria muito forte e, devido a isso, também apareciam bastantes eventos muito legais pela Gama Produção. Fazia trabalho de assessoria, montava a pasta da empresa com releases, fotos incríveis, convites para show, cartazes e os LP’s e deixava depois nas redações. A Rádio Pajeú FM foi meu primeiro trabalho, e só depois que apareceu a televisão na minha vida, primeiro com campanhas publicitárias para o Romcy e depois como apresentadora de televisão.

Segunda- feira?

[Maísa, ao ouvir a pergunta capciosa não se conteve e teve uma crise de risos]. Gente, mas como é que vocês souberam disso… Foi o seguinte, logo quando eu comecei a trabalhar na Jangadeiro como apresentadora, o meu chefe, toda segunda-feira me perguntava: e aí, moça, como estava o ônibus? E eu respondia a ele, sem entender direito: Ah… Lotado, como sempre. Aí, depois de mais ou menos três semanas de trabalho, descobri o porquê da pergunta dele. Em um belo dia, quando estava na parada, as pessoas começaram a me olhar e sempre tinha alguém que ficava imitando um comediante gritando o meu nome com bastante sotaque cearense… O meu chefe, na realidade, queria saber quando que eu iria começar a ser reconhecida pelo público.

Você acha que mudou muito depois de virar apresentadora de televisão?

Não, continuo sendo a mesma ‘cunha’ de sempre, humilde, aventureira, de poucos amigos e brincalhona. Nada mudou no meu jeito, apenas aumentaram os conhecimentos na minha área de trabalho.

E como você se sintetiza na fase adulta, mãe?

Como mãe sempre tive um bom relacionamento com meus filhos (o mais velho é jornalista e com o segundo – do segundo casamento-, ainda faz o terceiro ano), na adolescência não queria ter filhos, mas quando eu tive, vi como é bom ser mãe.

Maísa você não segue a risca os mandamentos da Igreja Católica. Qual o seu posicionamento sobre o casamento?

Sempre fui muito segura e nem com o primeiro namorado (pai do filho mais velho), onde tive quatro anos de relacionamento, nem com o segundo namorado (pai do caçula), que durou onze anos, me casei. O casamento para mim não tem muita importância, o que importa é o encontro das almas, é o ficar junto.

Como encarou a morte de seu segundo marido, que ocorreu de uma forma tão prematura?

Fiquei arrasada, cheguei a me arrepender de não ter se casado na igreja com ele, como várias vezes ele havia pedido. Até hoje sinto o vazio que ele deixou e não pretendo mais me envolver sério com ninguém.

A idade chegando?

Olha eu sou uma mulher de pouca vaidade, só me maqueio mesmo quando vou entrar no ar. Normalmente prefiro sair sem nada no rosto apenas um brilho labial. Não pretendo fazer plásticas porque, para mim, todos os traços que tenho em meu rosto fazem parte da minha história e, se modificá-los, seria como apagar uma parte dela. A gente sabe que, para se manter na TV, é necessário rostinho lisinho, bonitinho. Mas já falei: quando começarem a exigir que mude meu rosto com botox ou outros artifícios, nesse dia, sairei da TV.

Resuma Maísa Vasconcelos, como um todo.

Eu sou uma mulher muito determinada, meio tímida, esquisita mesmo. Apesar de fazer televisão, tenho poucos amigos e não gosto de sair para ambientes muito badalados. Sou bem caseira mesmo, os namorados foram poucos, só tive dois relacionamentos durante toda minha vida, sou bem família. Moro na Cidade 2000 e mau conheço o vizinho do lado. Sério mesmo… sou desse jeitinho…

O que você faria novamente se pudesse?

Faria muita coisa diferente, tentaria ter mais direcionamento na vida, mais foco, teria começado mais cedo no jornalismo, isso na parte profissional. Na vida pessoal, com certeza, teria sido mais inteira nas relações, teria tentado evitar a morte por enfarte do meu marido, observando os sinais que o corpo dele dava, mas acho que, mesmo assim, vivo com uma certa tranqüilidade e sou feliz… Então, como não dá mais para voltar atrás, prefiro seguir e tentar não errar mais como antes.

Ouça o documentário Primeira Pessoa,produzido pelo estudante de Jornalismo João Neto, em que Maísa Vasconcelos conta sua história.

Texto: Elisane Vasconcellos M. dos Santos

A graça e o coração de Karla Karenin

Foto: Walmy Silveira
Foto: Walmy Silveira

Ela é atriz, poetisa, cantora, bailarina, karateca, terapeuta, coaching, professora, mãe, dona de casa…e o leque não para de aumentar. Karla Karenina ficou conhecida no Brasil por conta da personagem Meirinha, da Escolinha do Professor Raimundo. Mas o humor é apenas uma das facetas da artista, que já atuou nas novelas ’Andando nas Nuvens’ e ‘Morde e Assopra’. Também atuou em 5 filmes nacionais, com destaque para Cilada.com e a produção internacional Área Q.

Falando assim, parece que tudo ocorreu de forma rápida e fácil, mas vamos entender a história dela desde o início. Nascida em 06 de dezembro de 1967, em Fortaleza, Karla foi uma criança muito vaidosa, sensível e questionadora. “Sempre gostou de se enfeitar, de se pintar, de arrumar o cabelo, falava tudo muito explicado (…) Sentava na calçada toda faceira, com as perninhas cruzadas. Desde cedo, ela já demonstrou que era diferente”, conta Áuria Bastos, tia da atriz. A tia, que cuidou de Karla quando pequena, guarda todos os recortes com entrevistas e fotos da sobrinha. “Guardo tudo que sai sobre a Karla, ela é como uma filha pra mim.” E entrega que a atriz liga até hoje dizendo que está com saudade do mingau que a tia fazia pra ela na infância. “Ela não esquece desse mingau!”.

Karla com 1 aninho, em sua casa na ‘Vila Sarita” – atual Avenida Alberto Magno.
Karla com 1 aninho, em sua casa na ‘Vila Sarita” – atual Avenida Alberto Magno.

Karla começou a se expressar artisticamente através do balé, tendo sido aluna de Dora Andrade (fundadora da Edisca). Inventava peças teatrais em casa e se apresentava para a família. Ficava horas dando entrevistas imaginárias à jornalista Leda Nagle, sonhando ser famosa. Aos 7 anos, matriculou-se sozinha em aulas de piano, mas sua mãe descobriu e a impediu de continuar o curso dizendo que ela nunca iria conseguir aprender a tocar, pois era coisa de gente rica. Mas a semente da arte havia nascido dentro dela, bastava uma chuvinha e a artista apareceria.

Foi o que aconteceu em 1984, quando surgiu uma espécie de “disque-amizade” que virou mania em Fortaleza: o “145″. Karla passou a ligar para o telefone dizendo-se uma empregada recém-chegada do interior fazendo uma voz bem gasguita. A tal empregada se tornou febre e as pessoas ligavam só para ouvir a voz e as histórias dessa figura tão irreverente. Assim, de uma brincadeira, nasceu a Meirinha.

Caricatura da Meirinha feita pelo cartunista Mino Castelo Branco.
Caricatura da Meirinha feita pelo cartunista Mino Castelo Branco.

Seus primeiros shows ocorreram na Concha Acústica da UFC e no Pirata Bar que, na época, veio a se tornar o primeiro palco de uma verdadeira safra de novos humoristas. Estreou na TV em 1992, com o programa “Meirinha 13 horas”, da TVC, sátira ao “Jô Soares 11 e meia” – veiculado no SBT naquele período. O talk-show da artista recebia personalidades do estado e, na época, tinha um fã especial, o então governador Ciro Ferreira Gomes, quem falou dos dotes da artista para Chico Anysio. Chamou a atriz em seu gabinete e a colocou no telefone com o mestre pra que ela fizesse a voz da personagem. “Eu quase morro do coração”, conta Karla. Chico ficou encantado com o misto de pureza e comicidade da personagem e convidou-a para fazer parte do elenco da Escolinha do Professor Raimundo. A partir da sua aparição nas telas da Globo, seu sucesso só aumentou.

Cena da Meirinha na Escolinha:

Gravou em 1995, o CD “Jóia de Jade” com composições exclusivamente cearenses. Dentre as faixas, “Palavra de Amor”, de Manassés e Fausto Nilo, e “Lupiscínica”, de Petrúcio Maia e Augusto Pontes.

Karla sempre contou com o forte apoio do pai, o linguista e filólogo José Alves Fernandes (falecido em maio deste ano), que apesar de desejar que a filha tivesse uma profissão “normal”, sabia que a arte era o que realmente a fazia sentir-se viva e feliz. A influência do pai também lhe estimulou a enveredar pela escrita, tendo publicado, em 1999, o livro de poesias “Era uma vez…”, sob a chancela de nada menos que Antônio Martins Filho e Arthur Eduardo Benevides. E já possui matéria-prima suficiente para um segundo livro de poemas e mais outros dois sobre temas que prefere ainda não revelar. Sua produção poética trouxe o convite, em 2011, para compor a Academia Cearense de Letras e Jornalismo, onde ocupa a cadeira nº 24, cujo patrono perpétuo é o escritor José Costa Matos.

Um dos poemas de seu livro, “Curiosidade”, fala de um amor que havia partido para terras nipônicas:

Do outro lado do mundo
Do outro mundo de lado
Do lado de quem?
De quem me queixas?
De gueixas?
De sensuais roupas de seda?
Não cedas
Sou para ti, te amo.

Participou, em 1999, da novela “Andando nas Nuvens”, de Euclides Marinho, contracenando com Suzana Vieira e Marco Nanini. Em 2011, interpretou Anecy no folhetim “Morde e Assopra”, de Walcyr Carrasco. Nesta última, teve de encarar cenas extremamente dramáticas, atestando que sua performance como artista vai muito além dos personagens cômicos. Aqui é possível conferir a emocionante cena em que a personagem de Karla recebe a notícia da morte da filha.

Cena da novela Morde e Assopra, Rede Globo (2011).  Foto: Divulgação
Cena da novela Morde e Assopra, Rede Globo (2011). Foto: Divulgação

No mesmo ano participou do filme Cilada.com, que atingiu a marca histórica de mais de dois milhões de expectadores. Sua personagem, “Augusta”, já havia feito parte de três temporadas da série Cilada no canal Multishow, e no longa, ela compõe uma das cenas mais engraçadas ao lado de “Marconha”, interpretado por Sérgio Loroza.

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Cena do filme Cilada.com. Foto: Divulgação

Dedicação a causas sociais

Sua trajetória conta com fatos que vão além da produção artística profícua. Karla demonstra grande preocupação com as questões sociais, sensibilizando-se e importando-se com o outro como muito poucos. Por meio da arte, pôde participar de várias ações que reafirmaram o valor humanitário e o poder de mobilização da artista. Foi madrinha dos presos do IPPS em 1992, onde chegou a ficar amiga de presos considerados perigosos na época, como Mainha e Carioca – o detento que fez refém Dom Aloísio Lorscheider. Encarava corajosamente as visitas ao presídio e seus riscos. Os policiais perguntavam: “Meirinha quer escolta?” e Karla respondia “Não precisa, minha escolta é invisível”.

Em 1995, foi vice-presidente do Iprede (Instituto de Prevenção à Desnutrição e a Excepcionalidade) e, em 1996, recebeu o título de embaixadora da Instituição. Um dos comerciais mais emblemáticos do Iprede foi protagonizado pela atriz, que inicia o vídeo caracterizada como “Meirinha” e em seguida tira a maquiagem e fala “Agora é serio…”, frase que marcou a campanha em prol das crianças desnutridas na década de 1990. Sua atuação também lhe rendeu uma homenagem dos Mercadinhos São Luís, que exibiu uma série de comerciais na mesma década, que reverenciava personalidades atuantes do estado. Veja o vídeo “Me acostumei com você”, com a narração arrepiante do ator Ricardo Guilherme:

No ano de 2005, foi convidada para integrar o Morhan (Movimento de Apoio às Pessoas Atingidas pela Hanseníase), viajando pelo país para desmistificar a doença, alertar sobre os sintomas e reduzir o preconceito. Também participam do movimento artistas como Ney Matogrosso, Elke Maravilha e outras personalidades com destaque em causas sociais.

Mesmo com uma agenda sempre cheia, dividida entre atendimentos terapêuticos, shows, cursos e oficinas, Karla sempre consegue realizar trabalhos voluntários, seja como artista ou como cidadã. Roberto Barbosa, diretor da Casa da Caridade e amigo há 17 anos, relata que Karla sempre foi uma pessoa muito humana, preocupada com as pessoas, com a família e em se tornar alguém melhor. “Ela tem essa bondade natural no coração e em tudo que ela faz coloca muito amor, a gente percebe isso não só no trabalho dela, mas na vida como um todo, ela coloca muito amor nas coisas”, enaltece o amigo.

Mais recentemente passou a desenvolver um novo ofício, o de terapeuta de regressão, e utiliza uma técnica inovadora para a cura das dores profundas da alma – a DMP (Deep Memory Process), criada pelo psicólogo inglês Roger Woolger.

Ministra o curso “O Poder Feminino e as artes sensuais” há seis anos, trabalho que, em síntese, desperta a consciência corporal e a sensualidade feminina. E ainda encontra tempo para o karatê, luta que pratica desde 2004.

A ENTREVISTA

Ladeada por sua fiel companheira, a dálmata Julieta, e alguns dos seus sete gatos, Karla contou na varanda de sua casa, que também chama de “meu templo sagrado”, várias histórias marcantes de sua carreira.

As condições da repórter eram um tanto especiais, alguns podem até chamar de “covardia”, mas isto explicarei mais adiante ao curioso e paciente leitor de “Retratos e Perfis”. Só posso adiantar que, apesar das circunstâncias, a construção deste perfil não foi nada fácil.

Animais, pedras e plantas ao redor, incenso de canela aceso e Billie Holliday tocando ao fundo. O cenário imprimia a aura de uma pessoa romântica, guiada por encantamentos místicos, mas ao mesmo tempo muito ligada à terra e à realidade que a cerca. Era um domingo, não tínhamos outros compromissos marcados, e por isso a conversa se estendeu por mais de uma hora e meia. Karla falou do início de sua carreira, do legado de Chico Anysio, do seu trabalho como terapeuta de regressão e de seus pequenos prazeres como aguar plantas e ficar admirando as roupas limpas no varal.

O humor é como se fosse uma janela que se abre numa casa totalmente escura e fechada. Você tem que abrir essa janela pra sobreviver. (…) Todo artista é uma criança que não foi compreendida, que não teve atenção, e ela precisa dar asas, ela precisa abrir essa janela. Karla Karenina

R&P: Como foi chegar em casa em contar que estava fazendo show de humor?

KK: Eu não me lembro, pra mim era normal chegar em casa anunciando que ía participar de um festival de música, de dança ou de teatro. Então, fazer show de humor era mais uma coisa que a Karla tava inventando, como outras que “ela” já inventava, por isso meu pai não estranhou muito.

R&P: Você conquistou projeção nacional por meio do humor, mas na novela Morde e Assopra você teve que atuar em cenas extremamente dramáticas. O drama é mais difícil que o humor? Ou como dizem por aí: quem faz humor faz tudo?

KK: Acho que quem faz humor faz de tudo mesmo. Mas não sei se dá pra generalizar porque tem gente que já fica tão marcado pelo humor que não consegue convencer no drama. Eu me identifico muito com o Chico Anysio. Eu fiquei sabendo através do Bruno (filho dele) que o Chico era muito mais dramático do que cômico na alma dele e eu tenho uma veia para o drama muito forte dentro de mim. Percebo muito isso quando estou escrevendo minhas poesias, eu jogo essa carga dramática na escrita. Mas não dá pra dizer que o drama é mais fácil que humor porque são situações muito diferentes. Por exemplo, não tem coisa pior pra um humorista do que pegar uma plateia fria. Eu já senti muita aflição com alguns públicos. Não é como num show musical no qual as pessoas podem reagir ou não, você tem a obrigação de fazer rir. E o drama requer muito desprendimento, muito desapego do ator, porque senão ele não convence.

R&P: Em uma das últimas entrevistas do Chico Anysio, ele afirmou “O humor só existe em países com problemas. Não existe humorista sueco ou finlandês. Do problema nasce o humor.” Ele inclusive confessou nesta entrevista que sofria de depressão havia muitos anos. O que você acha dessa fala dele?

KK: É fantástica, porque o humor é como se fosse uma janela que se abre numa casa totalmente escura e fechada. Você tem que abrir essa janela pra sobreviver. Eu acho que o humor é essa janela, como eu acho que a arte de maneira geral é pro artista. Todo artista é uma criança que não foi compreendida, que não teve atenção e ela precisa dar asas, ela precisa abrir essa janela. E ser engraçado é uma forma muito eficaz de chamar atenção. Então, se você não tem problema fica difícil satirizar, ir pra outro extremo. É aquela história, por trás da máscara do palhaço, tem sempre uma criança chorando. Muitos artistas sofrem de depressão, tem problemas sérios por conta disso, porque são almas incompreendidas, insatisfeitas e com uma sensibilidade muito grande. E no humor principalmente, a chance da pessoa que faz humor ser uma criança incompreendida é ainda maior.

R&P: Você trabalhou com Chico Anysio na Escolinha e depois trabalhou com filho dele, Bruno Mazzeo na série Cilada e no filme Cilada.com. Como foi contracenar com essas duas gerações?

KK: Foi muito especial pra mim, sempre digo que foi um privilégio pra mim porque são dois estilos diferentes de fazer humor, duas personalidades diferentes, mas dois gêniozinhos. Gêniozão e gêniozinho, seguindo a hierarquia. E foi interessante me experimentar também, com um de uma forma mais caricata e com outro de uma forma mais naturalista.

R&P: No filme Área Q você contracenou com um artista internacional e em inglês. Como foi essa experiência pra você?

KK: Nossa! Foi uma experiência muito interessante, uma honra contracenar com o Isaiah Washington, que já foi dirigido por Spike Lee, já atuou com grandes figuras como Clint Eastwood. Dá aquela coisa né, vou contracenar com esse cara e ainda mais na língua dele? Mas ele é muito centrado, muito light, foi uma química ótima. E aí deu tudo certo, eu consegui passar a naturalidade que o Gerson (diretor do filme) queria. E aí é que tá a grande beleza da arte, é você fazer uma coisa parecendo que não tem nada demais.

R&P: Você agora também trabalha com terapia de regressão por meio da Deep Memory Process. Como você descobriu a técnica e como ela interage com o seu trabalho de artista?

KK: Eu trabalhei como arte-terapeuta no projeto “Arte de Saúde” dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e uma amiga do grupo indicou uma palestra pra eu assistir, e quando cheguei lá, descobri que era sobre uma formação em uma técnica de regressão de memória que ía acontecer aqui em Fortaleza, e ministrada pelo próprio criador do método, o Dr. Roger Woolger. Quando eu ouvi falar nesse nome eu fiquei passada porque era nome do autor do meu livro de cabeceira que é “A Deusa Interior”. Eu fiquei muito instigada em fazer por ser uma técnica que trabalha com psicodrama e não com hipnose e que eu vi que tinha tudo haver com a minha história, com a minha busca pessoal e uma maneira de ir atrás da minha própria cura. Aí eu movi céus e terras pra completar os seis módulos da formação (que eram cobrados em dólar). Eu nunca sabia como ía pagar, mas deu tudo certo e eu consegui me formar com o próprio Roger. E a técnica se encaixou perfeitamente no meu trabalho de artista, principalmente na “Oficina de Equilibração” que eu ministro pra atores, terapeutas, comunicadores, em que eu me utilizo de algumas ferramentas dessa técnica pra ampliar os potenciais das pessoas, no sentido de eliminar os traumas, identificar alguns complexos. Hoje eu atendo na clínica como terapeuta e isso faz uma diferença enorme pra mim tanto profissionalmente como pessoalmente, eu me sinto totalmente contemplada com essas duas profissões. Sinto que eu descobri a minha razão de ser como atriz e terapeuta.

R&P: Você contou que tem dias que você faz show, faz atendimento terapêutico, dá palestra, e ainda faz comida, pega filho no colégio. Como você consegue dar conta de ofícios tão distintos e ainda ser dona de casa?

KK: Gente do céu! Eu só sei lhe dizer uma coisa: que isso faz parte da minha vida, esse monte de coisas, tudo ao mesmo tempo agora. E voltando falar do livro “A Deusa Interior”, onde eu encontro muitas respostas e o religar de muitas coisas, ele conta que o arquétipo da Grande-mãe foi fragmentado pela chegada do patriarcado e aí foram surgindo os arquétipos das outras deusas. Ao saber disso, percebi que poderia ser quem eu era com essas partes todas juntas, e a beleza da vida é perceber esses diversos personagens numa pessoa só. Isso é o que nos torna completos! Eu não preciso deixar de ser dona de casa ou ser uma boa mãe, pra ser uma boa profissional. Dá tempo pra tudo. Até porque todas essas partes estão aqui dentro de mim. Eu tento organizar a minha vida pra que cada uma dessas personagens, a mãe, a profissional, a dona de casa, a mulher…vivam em harmonia e sejam contempladas na sua hora. O dia tem 24 horas, dá tempo pra 24 personagens!! (risos)

R&P: O que você gosta de fazer nas horas livres?

KK: Ouvir música, cozinhar, olhar o jardim, ler. Ah! Uma coisa que eu amo, não sei por que, mas olhar roupa estendida no varal, ver o vento passando, me dá uma paz incrível. Aguar o jardim, sentir o cheirinho das plantas subindo, tomar um banho cansada, acender um incenso, essas pequenas coisas.

R&P: E projetos para o futuro?

KK: Acordar amanhã é um bom plano, tomar um banho, ir pra uma reunião de trabalho. Ao longo do tempo eu tive que me acostumar a não fazer muitos planos na vida de atriz e aprender a conviver com isso. Tenho o sonho de montar um espetáculo cantando, fazendo várias coisas ao mesmo tempo, que é a minha cara. Cada coisa na sua hora. Vamo vendo…amanhã eu sei.

Bate-papo/Psicanálise com o leitor:

Como prometido, contarei as condições particulares deste perfil. Eis que a aspirante a repórter é filha da entrevistada. Vou explicar melhor. A construção deste perfil foi um desafio proposto pela professora da disciplina de Oficina em Webjornalismo, Adriana Santiago. A opção parecia um pouco cômoda, mas ao mesmo tempo eu pensei “Pourquoi pas?”. Além do mais, Karla está prestes a completar 25 anos de carreira, é uma profissional competente e que não para de criar e de se refazer dentro da profissão, ou melhor, das profissões, é uma mãe que se desdobra em mil pra segurar a onda sozinha de um filho aborrecentíssimo (meu irmão Pedro de 14 anos) e de uma chorona de 26 anos, que demorou a descobrir o que queria da vida e que hoje só está cursando Jornalismo em uma universidade particular por conta do apoio financeiro e moral da mãe e do avô, convocado há poucos meses para integrar a Academia de Letras do Céu.

Este perfil é minha forma de agradecer por tudo que ela fez e faz por mim e uma maneira de compartilhar com o mundo um pouco da artista e do ser humano que ela é – uma eterna aprendiz das maldades do mundo, talvez uma Pollyana incurável.

Foi difícil obter certo distanciamento, mas pesquisei sobre a vida dela como qualquer outro jornalista faria. Apesar de filha, eu não podia me confiar apenas nas minhas memórias e nas histórias contadas em casa. Fiquei impressionada com a quantidade de coisas que ela já fez, com o número de vídeos e referências a ela na Internet, ri de entrevistas que ela deu aos 22 anos e fiquei feliz com o seu amadurecimento. Estou cônscia da minha corujice e bajulação, sei que a neutralidade jornalística foi pro beleléu, mas o compromisso com a verdade foi mantido. Sigo aberta a críticas e mais desafios, pois sei que estou na Universidade e no mundo para APRENDER e esta foi uma oportunidade incrível de crescimento e aprendizado.

Criatura entrevistando a criadora. Foto: Davi Sampaio
Criatura entrevistando a criadora. Foto: Davi Sampaio

Texto: Camila Fernandes