[Retratos e Perfis] Do interior do Ceará para o mundo

Foto: Acervo pessoal
Foto: Acervo pessoal

Qual o tamanho do desafio que você pode aceitar? Para muitos essa pergunta vem acompanhada de medo e incerteza sobre a responsabilidade da temida missão a ser encarada. Para o educador físico Gláucio de Oliveira Castro, falecido em novembro de 2006, sua vida foi ilustrada de inúmeros desafios e superação.

Nascido no interior do estado do Ceará, na cidade de Morada Nova, Gláucio, filho caçula de Francisco Castro e Tereza Castro descobriu desde cedo a paixão pelo esporte e, como quase toda criança, o talento pelo futebol.

Definido por amigos e familiares como um cearense que nunca perdeu as origens, Gláucio fazia questão de levar o nome do Estado por todos os lugares do mundo que ele estava. O filho ilustre de Morada Nova teve que deixar sua terra natal na adolescência para estudar em Fortaleza.

Graduado em Educação Física pela Universidade de Fortaleza (Unifor), Gláucio foi jogador de futsal e defendeu clubes Sumov, Banfort, Trilhoteiro (RS), tendo passagem também pela Liga Espanhola de Futsal. No seu vasto currículo de títulos, o de campeão brasileiro juvenil na I Taça Brasil promovida pela Confederação Brasileira de Futsal (CBFS) foi um dos mais marcantes da sua carreira. Como adulto, ele foi campeão brasileiro adulto jogando pelo Sumov, Banfort e seleção cearense.

Responsável por alavancar o futsal cearense no cenário nacional, Gláucio disputou o campeonato mundial de Futsal em 1988, na Austrália. Bom de bola e sempre buscando o aperfeiçoamento intelectual fora das quadras, o cearense de Morada Nova logo após encerrar sua carreira como jogador decidiu ser treinador de futsal.

O talento de Gláucio para comandar foi a grande marca da sua carreira. Técnico de vários clubes no Brasil, a sua competência para conquistar títulos ficou marcada nos estados do Ceará e Rio Grande do Sul, onde conquistou os respectivos títulos estaduais. Liderou times de grande visibilidade, como o Carlos Barbosa, o Minas Tênis Clube, Sumov e UCS.

Assumiu as seleções de base do Brasil e foi auxiliar técnico da principal ao lado de Fernando Ferreti. Sagrou-se bicampeão Sul Americano Sub-20 (2002 e 2004) e campeão do Mundialito Adulto, em 2002, na Itália, vencendo a seleção brasileira adulta na final por 3×1.

Em seus últimos anos de vida, além de treinador Gláucio ministrava cursos e palestras de capacitação em todo o país e até mesmo no exterior. Escreveu um livro sobre as relações de um técnico com as pessoas que constituem seu ambiente do trabalho, intitulado “Perfil de um Treinador no Mundo Globalizado”. Livro este contendo depoimentos de estrelas do esporte como o jogador Falcão, o técnico Fernando Ferreti e o técnico de voleibol Bernardinho. Iniciou outro trabalho sobre táticas e técnicas do futsal, que foi interrompido pela fatalidade de seu falecimento e segue inacabado.

Alçando novos vôos e aceitando desafios

A pergunta feita acima sobre qual o tamanho do desafio que você poderia aceitar foi respondida facilmente pelo professor Gláucio. Após receber o convite do Governo da Tailândia para implantar o Futsal no país, ele não teve medo do desafio e “simplesmente” aceitou. Novo país, nova cultura, novo idioma. Para alguns, isso poderia tornarem-se fatores determinantes para desistir, mas o filho de Morada Nova provou que é possível fazer asiático ser bom de bola e bom no futsal.

No primeiro ano do projeto na Tailândia, Gláucio ajudou o time a se classificar para o mundial e levou a Seleção Nacional da Tailândia a ser Campeã Asiática de Futsal.

Dizem por aí…

“Nos deixou nesta semana, mudando-se, por gosto de Deus, para sua morada no oriente eterno, abrindo uma enorme lacuna nos corações dos salonistas brasileiros e mundiais, já que reverenciado mundialmente pela sua lisura, capacidade, amizade e respeito aos compromissos que assumia. Todos reverenciaram a pessoa de Gláucio de Castro. Com 46 anos de vida e relevantes serviços prestados ao país, Gláucio de Castro merece, pelo menos, um muito obrigado por parte da Confederação Brasileira de Futsal.” – Carlos Bittencourt – Ex funcionário da Confederação Brasileira de Futsal

“É muito difícil ainda saber que o Glaucio não está conosco. Porém, nunca me esqueço dele, pois tenho diversas camisas que ele me deu e que são as mais bonitas” – Lúcio Bonfim – Ex secretário de esportes

“Meu carinho a você é a verdade presente, dentre os amigos que tive, embora por pouco tempo, o Gláucio foi amigo, parceiro, confidente e sonhador, aprendi com ele que a vida vale a pena e que o social não é apenas pra ser visto pela TV. Valeu Gláucio!” – Marcondes Rodrigues – amigo e companheiro do futsal

“A coluna hoje é dedicada a sua memória. Ele teve três paixões na vida: a família, a cidade Morada Nova e o futebol de salão. Como craque chegou à Seleção Brasileira e como técnico também, dirigindo a Seleção Sub 20. Foi ele o fundador e o criador do Curso de Formação de Novos Técnicos, que se iniciou no dia 9/12 passado e é em sua homenagem. Obstinado, teve nome internacional quando jogou na Espanha e foi treinador da seleção nacional da Tailândia. Professor de Educação Física, lançou um livro e jogou futsal no Rio Grande do Sul.”- Coluna do Silvio Carlos – Jogada – Diário do Nordeste, 13 de dezembro de 2010. Amigo, companheiro do futsal e presidente da Federação Cearense de Futebol de Salão

“Leal, solidário e extremamente humano, era de uma simplicidade que impressionava. Viveu a vida rindo e não guardou ódio de ninguém. Parecia um menino, tal a grandeza de caráter e a personalidade da educação forjada e alicerçada no amor aos pais Teresinha e Chico. Casado com Liliane de Castro, que continua na luta e coordena o curso que se realiza no FB.” – Coluna do Silvio Carlos – Jogada – Diário do Nordeste, 13 de dezembro de 2010. Amigo, companheiro do futsal e presidente da Federação Cearense de Futebol de Salão

“Falar do Gláucio me faz sentir sua presença. Conheci-o nos jogos universitários em Minas Gerais em 1982 e começamos uma paquera que logo se tornou um relacionamento de 23 anos. Sempre senti seu amor por mim e por nossa família. Ele foi uma pessoa carinhosa, paciente (também com 5 mulheres na sua vida, rs). Companheiro, espirituoso, desligado, relaxado. Profissionalmente, era dedicado a sua carreira, estudioso, positivo, vitorioso, zangado, tempestivo. Acho que o Gláucio não pertencia a este mundo. Possuía um carisma que nem ele sabia. Descobri o quanto ele era amado e respeitado pelas conversas e encontros que tive com pessoas depois de sua morte.” – Liliane Benício – esposa.

Texto: Luana Benício e João Bandeira Neto

[Retratos e Perfis] Maísa Vasconcelos: uma comunicadora por excelência

 

Maísa é conhecida por sua imagem de mulher firme e decidida. Foto: Divulgação
Maísa é conhecida por sua imagem de mulher firme e decidida. Foto: Divulgação

“Mulher sempre muito determinada e inteligente, tímida, de poucos amigos, como é muito reservada às vezes parecendo até antipática, não é popular, não é farrista, de poucos namorados”. Mailma de Sousa, irmã

Impulsiva de constantes sobrancelhas elevadas ao ser contrariada, porém sempre carregando um vasto sorriso, assim se constitui Maísa em suas peculiaridades e traços faciais. Jornalista, mandona, radialista, decidida, apresentadora de TV, mulher de personalidade forte. Do interior de Itapipoca (Matinhas) amparada pelas tradições do lugarejo cearense migrou com a família para Fortaleza logo ao completar um ano de idade. A cidade que a acolheu e lhe mostrou caminhos que apontavam para a comunicação.

“E a Maísa sempre foi a mandona, a coordenadora da guanguesinha. E quando as coisas não davam certo, a gente apanhava (e todos tinham que apanhar, era a lei lá em casa), a Maísa era como se fosse nossa líder”. Mailma de Sousa, irmã.

Desde 1989, atua em Rádio e Televisão. Durante dezesseis anos esteve à frente do programa Na Boca do Povo, da TV Jangadeiro, afiliada do SBT no Ceará. Antes, foi apresentadora de telejornal e de programas culturais na TVE, hoje TVC. Em rádio, trabalhou na Pajeú FM e, em seguida na Casablanca FM. Mais recentemente, editou o caderno “Viver”, sobre saúde e bem-estar, para o jornal O ESTADO. Blogueira desde 2002, edita o blog “Maísa na Blogosfera” e é atuante nas redes sociais . Fez parte do time de apresentadores da TV Jangadeiro, da TV Diário, e agora está na Nordeste TV.

maisa 2Ao perguntarmos sobre seu nascimento, Maísa sorri e com grande entusiasmo diz que nasceu em Matinhas, em Itapipoca, lugarejo muito tranqüilo e de clima bem quente. “Era de rachar aquele sol (…)”.

Dizem que você é mandona desde criança. Você é mesmo? Lembra de algum fato que possa mostrar isso?

Ah, eu não acredito que ela me entregou [ sorrindo]. Sim, é verdade sempre fui meio mandona mesmo. Eu era como se fosse a coordenadora da ‘ganguesinha’. E quando as coisas não davam certo, a gente apanhava e todos tinham que apanhar era a lei lá em casa e eu, mesmo sendo como se fosse a líder de meus irmãos, também sobrava pra mim. Apanhava também.

Como foi a infância com a família?

A gente não podia brincar na rua porque nossos pais não deixavam, éramos sete irmãos, quatro mulheres e três homens. Eu era a segunda mais velha. Brincávamos mais no quintal de fazer guisado, brincava de casa e do que tinha. Não gostava de brincar de bonecas, preferia brincadeiras de meninos como: pião, bila – era meio menino mesmo -, ‘três-três-passará’, pega-pega e um pouco maior brincava de escritório.

Falta de tempo para a família?

Realmente mau tenho tempo para ficar com a família. Trabalho a semana toda e, como não gosto de acordar cedo, apesar de trabalhar pela manhã, nos finais de semana só acordo depois do meio dia [Diz, com os olhos cheios de lágrimas].

E o primeiro neto?

Foi muito engraçado quando eu fiquei sabendo que ia ser avó [respira fundo].

Soube que ia ser avó no dia do meu aniversário, quando já estava me preparando para virar mochileira. Quando meu filho chegou com a namorada, uma mocinha pequena, de olhar tímido, de cabeça baixa e disse: ‘ mãe tenho uma coisa para te dizer”. Quando ele falou isso, desabei no choro. Meu coração já me dizia que se repetia o que há tempos atrás havia acontecido comigo: ela estava grávida. Meu filho ia ser pai… Passei três dias trancados no quarto chorando e, quando sai, já fui logo chamando a moça para vir morar conosco.

O Caio hoje já está com quatro anos e ele é muito grudado em mim. Certa vez ele falou uma pérola que nunca mais esqueci: “Vovó peixes não tem pálpebras, e ainda dormem”

E como era na época de estudante?

Sempre estudei com minha irmã Mailma, mesmo ela sendo mais velha. Eu era morena e ela era loira. Lembro-me que, quando eu já estava no colégio, várias foram as vezes que minha mãe me deixou junto a Mailma na sala de aula dela. Eu era muito nova e não tinha idade para estudar ainda, mas como meus pais não tinham onde me deixar ficava lá com ela. Certa vez a professora fez um pergunta na sala e só eu soube responder, desde esse dia a professora disse que meus pais já poderiam me matricular na escola, porque mesmo eu sendo ainda muito nova já entendia e acompanhava todo o assunto escolar com naturalidade.

Como era a sua relação com seus irmãos?

Éramos inseparáveis, eu e a Mailma, principalmente, muitos achavam até que éramos gêmeas, nossos pais costumavam vestir todos nós de forma parecida. Agora com meus outros irmãos tínhamos alguns probleminhas, porque como eu sempre tive um gênio muito forte e minha opinião é que tinha que prevalecer sempre, discutíamos por muitas vezes, mas era coisa momentânea logo fazíamos as pazes. Sempre fui uma aluna de boas notas, sendo que nunca gostei de estudar quando estava em casa, gostava de prestar a atenção nas aulas e só tirava notas altíssimas. Inclusive teve uma vez que cinco de nós pegamos sarampo e eu, mesmo doente, fingi estar boa para poder ir para o colégio, simplesmente adorava ir para a escola.

Na adolescência, ocorreu algum fato que você tenha ficado desnorteada?

Sim, quando completei 18 anos descobri que estava grávida e o pai da criança, meu namorado, tinha 15 anos. Foi um escândalo na cidade, tanto por minha família ser muito rígida e tradicional como também porque a mãe do meu namorado o expulsou de casa e me acusava de ter seduzido ele, porque eu já era maior de idade e ele ainda era um adolescente. Costumo dizer que namorava sentada no passado e as pessoas sempre pedem para eu explicar. Aí eu explico: porque meu pai ficava ouvindo tudo, se rolasse uns beijos mais barulhentos ele já ia lá acabar com isso. A gravidez, e tudo isso, foi muito decepcionante para meus pais que tinham em mim a pessoa mais responsável da família.

E como lidou com a decepção que os pais sentiram de você, sua mãe Idinha?

Foi bem difícil, porque a mamãe logo disse: você que sabia tudo do mundo, você não sabia como evitar a gravidez? Além do que, como eu não quis casar, piorou ainda mais tudo.

A Maísa como Universitária, como era?

Eu fiz Arquitetura, praticamente morava no pátio da Arquitetura, saia 6h30 voltava 22h. O Falcão (cantor) ficava de babá do meu filho na cantina da faculdade e, como foi ficando pesado pra mim, em 1985 acabei abandonando o curso de Arquitetura. Mesmo lá na Arquitetura já participava de movimentos estudantis, nunca fiz parte de partido político porque tinha medo da repressão. Era “Prestista”, seguia Luis Carlos Prestes, embora não fosse do partido. Tinha visão pragmática diferente das outras pessoas. Sempre frequentei Congressos, palestras, estive presente na invasão da UFC dentro do cordão de frente de isolamento e foi daí que vi que tinha tudo haver com a Comunicação.

E como é a Maísa profissional?

Sou radialista de formação, fiz curso no Sindicato dos Radialistas, inclusive, na época, já estava casada pela segunda vez e trabalhando com produção (eventos). Era uma época muito rica em Fortaleza, era na época da Prefeitura da Maria Luisa, tinha uma secretaria muito forte e, devido a isso, também apareciam bastantes eventos muito legais pela Gama Produção. Fazia trabalho de assessoria, montava a pasta da empresa com releases, fotos incríveis, convites para show, cartazes e os LP’s e deixava depois nas redações. A Rádio Pajeú FM foi meu primeiro trabalho, e só depois que apareceu a televisão na minha vida, primeiro com campanhas publicitárias para o Romcy e depois como apresentadora de televisão.

Segunda- feira?

[Maísa, ao ouvir a pergunta capciosa não se conteve e teve uma crise de risos]. Gente, mas como é que vocês souberam disso… Foi o seguinte, logo quando eu comecei a trabalhar na Jangadeiro como apresentadora, o meu chefe, toda segunda-feira me perguntava: e aí, moça, como estava o ônibus? E eu respondia a ele, sem entender direito: Ah… Lotado, como sempre. Aí, depois de mais ou menos três semanas de trabalho, descobri o porquê da pergunta dele. Em um belo dia, quando estava na parada, as pessoas começaram a me olhar e sempre tinha alguém que ficava imitando um comediante gritando o meu nome com bastante sotaque cearense… O meu chefe, na realidade, queria saber quando que eu iria começar a ser reconhecida pelo público.

Você acha que mudou muito depois de virar apresentadora de televisão?

Não, continuo sendo a mesma ‘cunha’ de sempre, humilde, aventureira, de poucos amigos e brincalhona. Nada mudou no meu jeito, apenas aumentaram os conhecimentos na minha área de trabalho.

E como você se sintetiza na fase adulta, mãe?

Como mãe sempre tive um bom relacionamento com meus filhos (o mais velho é jornalista e com o segundo – do segundo casamento-, ainda faz o terceiro ano), na adolescência não queria ter filhos, mas quando eu tive, vi como é bom ser mãe.

Maísa você não segue a risca os mandamentos da Igreja Católica. Qual o seu posicionamento sobre o casamento?

Sempre fui muito segura e nem com o primeiro namorado (pai do filho mais velho), onde tive quatro anos de relacionamento, nem com o segundo namorado (pai do caçula), que durou onze anos, me casei. O casamento para mim não tem muita importância, o que importa é o encontro das almas, é o ficar junto.

Como encarou a morte de seu segundo marido, que ocorreu de uma forma tão prematura?

Fiquei arrasada, cheguei a me arrepender de não ter se casado na igreja com ele, como várias vezes ele havia pedido. Até hoje sinto o vazio que ele deixou e não pretendo mais me envolver sério com ninguém.

A idade chegando?

Olha eu sou uma mulher de pouca vaidade, só me maqueio mesmo quando vou entrar no ar. Normalmente prefiro sair sem nada no rosto apenas um brilho labial. Não pretendo fazer plásticas porque, para mim, todos os traços que tenho em meu rosto fazem parte da minha história e, se modificá-los, seria como apagar uma parte dela. A gente sabe que, para se manter na TV, é necessário rostinho lisinho, bonitinho. Mas já falei: quando começarem a exigir que mude meu rosto com botox ou outros artifícios, nesse dia, sairei da TV.

Resuma Maísa Vasconcelos, como um todo.

Eu sou uma mulher muito determinada, meio tímida, esquisita mesmo. Apesar de fazer televisão, tenho poucos amigos e não gosto de sair para ambientes muito badalados. Sou bem caseira mesmo, os namorados foram poucos, só tive dois relacionamentos durante toda minha vida, sou bem família. Moro na Cidade 2000 e mau conheço o vizinho do lado. Sério mesmo… sou desse jeitinho…

O que você faria novamente se pudesse?

Faria muita coisa diferente, tentaria ter mais direcionamento na vida, mais foco, teria começado mais cedo no jornalismo, isso na parte profissional. Na vida pessoal, com certeza, teria sido mais inteira nas relações, teria tentado evitar a morte por enfarte do meu marido, observando os sinais que o corpo dele dava, mas acho que, mesmo assim, vivo com uma certa tranqüilidade e sou feliz… Então, como não dá mais para voltar atrás, prefiro seguir e tentar não errar mais como antes.

Ouça o documentário Primeira Pessoa,produzido pelo estudante de Jornalismo João Neto, em que Maísa Vasconcelos conta sua história.

Texto: Elisane Vasconcellos M. dos Santos

A graça e o coração de Karla Karenin

Foto: Walmy Silveira
Foto: Walmy Silveira

Ela é atriz, poetisa, cantora, bailarina, karateca, terapeuta, coaching, professora, mãe, dona de casa…e o leque não para de aumentar. Karla Karenina ficou conhecida no Brasil por conta da personagem Meirinha, da Escolinha do Professor Raimundo. Mas o humor é apenas uma das facetas da artista, que já atuou nas novelas ’Andando nas Nuvens’ e ‘Morde e Assopra’. Também atuou em 5 filmes nacionais, com destaque para Cilada.com e a produção internacional Área Q.

Falando assim, parece que tudo ocorreu de forma rápida e fácil, mas vamos entender a história dela desde o início. Nascida em 06 de dezembro de 1967, em Fortaleza, Karla foi uma criança muito vaidosa, sensível e questionadora. “Sempre gostou de se enfeitar, de se pintar, de arrumar o cabelo, falava tudo muito explicado (…) Sentava na calçada toda faceira, com as perninhas cruzadas. Desde cedo, ela já demonstrou que era diferente”, conta Áuria Bastos, tia da atriz. A tia, que cuidou de Karla quando pequena, guarda todos os recortes com entrevistas e fotos da sobrinha. “Guardo tudo que sai sobre a Karla, ela é como uma filha pra mim.” E entrega que a atriz liga até hoje dizendo que está com saudade do mingau que a tia fazia pra ela na infância. “Ela não esquece desse mingau!”.

Karla com 1 aninho, em sua casa na ‘Vila Sarita” – atual Avenida Alberto Magno.
Karla com 1 aninho, em sua casa na ‘Vila Sarita” – atual Avenida Alberto Magno.

Karla começou a se expressar artisticamente através do balé, tendo sido aluna de Dora Andrade (fundadora da Edisca). Inventava peças teatrais em casa e se apresentava para a família. Ficava horas dando entrevistas imaginárias à jornalista Leda Nagle, sonhando ser famosa. Aos 7 anos, matriculou-se sozinha em aulas de piano, mas sua mãe descobriu e a impediu de continuar o curso dizendo que ela nunca iria conseguir aprender a tocar, pois era coisa de gente rica. Mas a semente da arte havia nascido dentro dela, bastava uma chuvinha e a artista apareceria.

Foi o que aconteceu em 1984, quando surgiu uma espécie de “disque-amizade” que virou mania em Fortaleza: o “145″. Karla passou a ligar para o telefone dizendo-se uma empregada recém-chegada do interior fazendo uma voz bem gasguita. A tal empregada se tornou febre e as pessoas ligavam só para ouvir a voz e as histórias dessa figura tão irreverente. Assim, de uma brincadeira, nasceu a Meirinha.

Caricatura da Meirinha feita pelo cartunista Mino Castelo Branco.
Caricatura da Meirinha feita pelo cartunista Mino Castelo Branco.

Seus primeiros shows ocorreram na Concha Acústica da UFC e no Pirata Bar que, na época, veio a se tornar o primeiro palco de uma verdadeira safra de novos humoristas. Estreou na TV em 1992, com o programa “Meirinha 13 horas”, da TVC, sátira ao “Jô Soares 11 e meia” – veiculado no SBT naquele período. O talk-show da artista recebia personalidades do estado e, na época, tinha um fã especial, o então governador Ciro Ferreira Gomes, quem falou dos dotes da artista para Chico Anysio. Chamou a atriz em seu gabinete e a colocou no telefone com o mestre pra que ela fizesse a voz da personagem. “Eu quase morro do coração”, conta Karla. Chico ficou encantado com o misto de pureza e comicidade da personagem e convidou-a para fazer parte do elenco da Escolinha do Professor Raimundo. A partir da sua aparição nas telas da Globo, seu sucesso só aumentou.

Cena da Meirinha na Escolinha:

Gravou em 1995, o CD “Jóia de Jade” com composições exclusivamente cearenses. Dentre as faixas, “Palavra de Amor”, de Manassés e Fausto Nilo, e “Lupiscínica”, de Petrúcio Maia e Augusto Pontes.

Karla sempre contou com o forte apoio do pai, o linguista e filólogo José Alves Fernandes (falecido em maio deste ano), que apesar de desejar que a filha tivesse uma profissão “normal”, sabia que a arte era o que realmente a fazia sentir-se viva e feliz. A influência do pai também lhe estimulou a enveredar pela escrita, tendo publicado, em 1999, o livro de poesias “Era uma vez…”, sob a chancela de nada menos que Antônio Martins Filho e Arthur Eduardo Benevides. E já possui matéria-prima suficiente para um segundo livro de poemas e mais outros dois sobre temas que prefere ainda não revelar. Sua produção poética trouxe o convite, em 2011, para compor a Academia Cearense de Letras e Jornalismo, onde ocupa a cadeira nº 24, cujo patrono perpétuo é o escritor José Costa Matos.

Um dos poemas de seu livro, “Curiosidade”, fala de um amor que havia partido para terras nipônicas:

Do outro lado do mundo
Do outro mundo de lado
Do lado de quem?
De quem me queixas?
De gueixas?
De sensuais roupas de seda?
Não cedas
Sou para ti, te amo.

Participou, em 1999, da novela “Andando nas Nuvens”, de Euclides Marinho, contracenando com Suzana Vieira e Marco Nanini. Em 2011, interpretou Anecy no folhetim “Morde e Assopra”, de Walcyr Carrasco. Nesta última, teve de encarar cenas extremamente dramáticas, atestando que sua performance como artista vai muito além dos personagens cômicos. Aqui é possível conferir a emocionante cena em que a personagem de Karla recebe a notícia da morte da filha.

Cena da novela Morde e Assopra, Rede Globo (2011).  Foto: Divulgação
Cena da novela Morde e Assopra, Rede Globo (2011). Foto: Divulgação

No mesmo ano participou do filme Cilada.com, que atingiu a marca histórica de mais de dois milhões de expectadores. Sua personagem, “Augusta”, já havia feito parte de três temporadas da série Cilada no canal Multishow, e no longa, ela compõe uma das cenas mais engraçadas ao lado de “Marconha”, interpretado por Sérgio Loroza.

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Cena do filme Cilada.com. Foto: Divulgação

Dedicação a causas sociais

Sua trajetória conta com fatos que vão além da produção artística profícua. Karla demonstra grande preocupação com as questões sociais, sensibilizando-se e importando-se com o outro como muito poucos. Por meio da arte, pôde participar de várias ações que reafirmaram o valor humanitário e o poder de mobilização da artista. Foi madrinha dos presos do IPPS em 1992, onde chegou a ficar amiga de presos considerados perigosos na época, como Mainha e Carioca – o detento que fez refém Dom Aloísio Lorscheider. Encarava corajosamente as visitas ao presídio e seus riscos. Os policiais perguntavam: “Meirinha quer escolta?” e Karla respondia “Não precisa, minha escolta é invisível”.

Em 1995, foi vice-presidente do Iprede (Instituto de Prevenção à Desnutrição e a Excepcionalidade) e, em 1996, recebeu o título de embaixadora da Instituição. Um dos comerciais mais emblemáticos do Iprede foi protagonizado pela atriz, que inicia o vídeo caracterizada como “Meirinha” e em seguida tira a maquiagem e fala “Agora é serio…”, frase que marcou a campanha em prol das crianças desnutridas na década de 1990. Sua atuação também lhe rendeu uma homenagem dos Mercadinhos São Luís, que exibiu uma série de comerciais na mesma década, que reverenciava personalidades atuantes do estado. Veja o vídeo “Me acostumei com você”, com a narração arrepiante do ator Ricardo Guilherme:

No ano de 2005, foi convidada para integrar o Morhan (Movimento de Apoio às Pessoas Atingidas pela Hanseníase), viajando pelo país para desmistificar a doença, alertar sobre os sintomas e reduzir o preconceito. Também participam do movimento artistas como Ney Matogrosso, Elke Maravilha e outras personalidades com destaque em causas sociais.

Mesmo com uma agenda sempre cheia, dividida entre atendimentos terapêuticos, shows, cursos e oficinas, Karla sempre consegue realizar trabalhos voluntários, seja como artista ou como cidadã. Roberto Barbosa, diretor da Casa da Caridade e amigo há 17 anos, relata que Karla sempre foi uma pessoa muito humana, preocupada com as pessoas, com a família e em se tornar alguém melhor. “Ela tem essa bondade natural no coração e em tudo que ela faz coloca muito amor, a gente percebe isso não só no trabalho dela, mas na vida como um todo, ela coloca muito amor nas coisas”, enaltece o amigo.

Mais recentemente passou a desenvolver um novo ofício, o de terapeuta de regressão, e utiliza uma técnica inovadora para a cura das dores profundas da alma – a DMP (Deep Memory Process), criada pelo psicólogo inglês Roger Woolger.

Ministra o curso “O Poder Feminino e as artes sensuais” há seis anos, trabalho que, em síntese, desperta a consciência corporal e a sensualidade feminina. E ainda encontra tempo para o karatê, luta que pratica desde 2004.

A ENTREVISTA

Ladeada por sua fiel companheira, a dálmata Julieta, e alguns dos seus sete gatos, Karla contou na varanda de sua casa, que também chama de “meu templo sagrado”, várias histórias marcantes de sua carreira.

As condições da repórter eram um tanto especiais, alguns podem até chamar de “covardia”, mas isto explicarei mais adiante ao curioso e paciente leitor de “Retratos e Perfis”. Só posso adiantar que, apesar das circunstâncias, a construção deste perfil não foi nada fácil.

Animais, pedras e plantas ao redor, incenso de canela aceso e Billie Holliday tocando ao fundo. O cenário imprimia a aura de uma pessoa romântica, guiada por encantamentos místicos, mas ao mesmo tempo muito ligada à terra e à realidade que a cerca. Era um domingo, não tínhamos outros compromissos marcados, e por isso a conversa se estendeu por mais de uma hora e meia. Karla falou do início de sua carreira, do legado de Chico Anysio, do seu trabalho como terapeuta de regressão e de seus pequenos prazeres como aguar plantas e ficar admirando as roupas limpas no varal.

O humor é como se fosse uma janela que se abre numa casa totalmente escura e fechada. Você tem que abrir essa janela pra sobreviver. (…) Todo artista é uma criança que não foi compreendida, que não teve atenção, e ela precisa dar asas, ela precisa abrir essa janela. Karla Karenina

R&P: Como foi chegar em casa em contar que estava fazendo show de humor?

KK: Eu não me lembro, pra mim era normal chegar em casa anunciando que ía participar de um festival de música, de dança ou de teatro. Então, fazer show de humor era mais uma coisa que a Karla tava inventando, como outras que “ela” já inventava, por isso meu pai não estranhou muito.

R&P: Você conquistou projeção nacional por meio do humor, mas na novela Morde e Assopra você teve que atuar em cenas extremamente dramáticas. O drama é mais difícil que o humor? Ou como dizem por aí: quem faz humor faz tudo?

KK: Acho que quem faz humor faz de tudo mesmo. Mas não sei se dá pra generalizar porque tem gente que já fica tão marcado pelo humor que não consegue convencer no drama. Eu me identifico muito com o Chico Anysio. Eu fiquei sabendo através do Bruno (filho dele) que o Chico era muito mais dramático do que cômico na alma dele e eu tenho uma veia para o drama muito forte dentro de mim. Percebo muito isso quando estou escrevendo minhas poesias, eu jogo essa carga dramática na escrita. Mas não dá pra dizer que o drama é mais fácil que humor porque são situações muito diferentes. Por exemplo, não tem coisa pior pra um humorista do que pegar uma plateia fria. Eu já senti muita aflição com alguns públicos. Não é como num show musical no qual as pessoas podem reagir ou não, você tem a obrigação de fazer rir. E o drama requer muito desprendimento, muito desapego do ator, porque senão ele não convence.

R&P: Em uma das últimas entrevistas do Chico Anysio, ele afirmou “O humor só existe em países com problemas. Não existe humorista sueco ou finlandês. Do problema nasce o humor.” Ele inclusive confessou nesta entrevista que sofria de depressão havia muitos anos. O que você acha dessa fala dele?

KK: É fantástica, porque o humor é como se fosse uma janela que se abre numa casa totalmente escura e fechada. Você tem que abrir essa janela pra sobreviver. Eu acho que o humor é essa janela, como eu acho que a arte de maneira geral é pro artista. Todo artista é uma criança que não foi compreendida, que não teve atenção e ela precisa dar asas, ela precisa abrir essa janela. E ser engraçado é uma forma muito eficaz de chamar atenção. Então, se você não tem problema fica difícil satirizar, ir pra outro extremo. É aquela história, por trás da máscara do palhaço, tem sempre uma criança chorando. Muitos artistas sofrem de depressão, tem problemas sérios por conta disso, porque são almas incompreendidas, insatisfeitas e com uma sensibilidade muito grande. E no humor principalmente, a chance da pessoa que faz humor ser uma criança incompreendida é ainda maior.

R&P: Você trabalhou com Chico Anysio na Escolinha e depois trabalhou com filho dele, Bruno Mazzeo na série Cilada e no filme Cilada.com. Como foi contracenar com essas duas gerações?

KK: Foi muito especial pra mim, sempre digo que foi um privilégio pra mim porque são dois estilos diferentes de fazer humor, duas personalidades diferentes, mas dois gêniozinhos. Gêniozão e gêniozinho, seguindo a hierarquia. E foi interessante me experimentar também, com um de uma forma mais caricata e com outro de uma forma mais naturalista.

R&P: No filme Área Q você contracenou com um artista internacional e em inglês. Como foi essa experiência pra você?

KK: Nossa! Foi uma experiência muito interessante, uma honra contracenar com o Isaiah Washington, que já foi dirigido por Spike Lee, já atuou com grandes figuras como Clint Eastwood. Dá aquela coisa né, vou contracenar com esse cara e ainda mais na língua dele? Mas ele é muito centrado, muito light, foi uma química ótima. E aí deu tudo certo, eu consegui passar a naturalidade que o Gerson (diretor do filme) queria. E aí é que tá a grande beleza da arte, é você fazer uma coisa parecendo que não tem nada demais.

R&P: Você agora também trabalha com terapia de regressão por meio da Deep Memory Process. Como você descobriu a técnica e como ela interage com o seu trabalho de artista?

KK: Eu trabalhei como arte-terapeuta no projeto “Arte de Saúde” dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e uma amiga do grupo indicou uma palestra pra eu assistir, e quando cheguei lá, descobri que era sobre uma formação em uma técnica de regressão de memória que ía acontecer aqui em Fortaleza, e ministrada pelo próprio criador do método, o Dr. Roger Woolger. Quando eu ouvi falar nesse nome eu fiquei passada porque era nome do autor do meu livro de cabeceira que é “A Deusa Interior”. Eu fiquei muito instigada em fazer por ser uma técnica que trabalha com psicodrama e não com hipnose e que eu vi que tinha tudo haver com a minha história, com a minha busca pessoal e uma maneira de ir atrás da minha própria cura. Aí eu movi céus e terras pra completar os seis módulos da formação (que eram cobrados em dólar). Eu nunca sabia como ía pagar, mas deu tudo certo e eu consegui me formar com o próprio Roger. E a técnica se encaixou perfeitamente no meu trabalho de artista, principalmente na “Oficina de Equilibração” que eu ministro pra atores, terapeutas, comunicadores, em que eu me utilizo de algumas ferramentas dessa técnica pra ampliar os potenciais das pessoas, no sentido de eliminar os traumas, identificar alguns complexos. Hoje eu atendo na clínica como terapeuta e isso faz uma diferença enorme pra mim tanto profissionalmente como pessoalmente, eu me sinto totalmente contemplada com essas duas profissões. Sinto que eu descobri a minha razão de ser como atriz e terapeuta.

R&P: Você contou que tem dias que você faz show, faz atendimento terapêutico, dá palestra, e ainda faz comida, pega filho no colégio. Como você consegue dar conta de ofícios tão distintos e ainda ser dona de casa?

KK: Gente do céu! Eu só sei lhe dizer uma coisa: que isso faz parte da minha vida, esse monte de coisas, tudo ao mesmo tempo agora. E voltando falar do livro “A Deusa Interior”, onde eu encontro muitas respostas e o religar de muitas coisas, ele conta que o arquétipo da Grande-mãe foi fragmentado pela chegada do patriarcado e aí foram surgindo os arquétipos das outras deusas. Ao saber disso, percebi que poderia ser quem eu era com essas partes todas juntas, e a beleza da vida é perceber esses diversos personagens numa pessoa só. Isso é o que nos torna completos! Eu não preciso deixar de ser dona de casa ou ser uma boa mãe, pra ser uma boa profissional. Dá tempo pra tudo. Até porque todas essas partes estão aqui dentro de mim. Eu tento organizar a minha vida pra que cada uma dessas personagens, a mãe, a profissional, a dona de casa, a mulher…vivam em harmonia e sejam contempladas na sua hora. O dia tem 24 horas, dá tempo pra 24 personagens!! (risos)

R&P: O que você gosta de fazer nas horas livres?

KK: Ouvir música, cozinhar, olhar o jardim, ler. Ah! Uma coisa que eu amo, não sei por que, mas olhar roupa estendida no varal, ver o vento passando, me dá uma paz incrível. Aguar o jardim, sentir o cheirinho das plantas subindo, tomar um banho cansada, acender um incenso, essas pequenas coisas.

R&P: E projetos para o futuro?

KK: Acordar amanhã é um bom plano, tomar um banho, ir pra uma reunião de trabalho. Ao longo do tempo eu tive que me acostumar a não fazer muitos planos na vida de atriz e aprender a conviver com isso. Tenho o sonho de montar um espetáculo cantando, fazendo várias coisas ao mesmo tempo, que é a minha cara. Cada coisa na sua hora. Vamo vendo…amanhã eu sei.

Bate-papo/Psicanálise com o leitor:

Como prometido, contarei as condições particulares deste perfil. Eis que a aspirante a repórter é filha da entrevistada. Vou explicar melhor. A construção deste perfil foi um desafio proposto pela professora da disciplina de Oficina em Webjornalismo, Adriana Santiago. A opção parecia um pouco cômoda, mas ao mesmo tempo eu pensei “Pourquoi pas?”. Além do mais, Karla está prestes a completar 25 anos de carreira, é uma profissional competente e que não para de criar e de se refazer dentro da profissão, ou melhor, das profissões, é uma mãe que se desdobra em mil pra segurar a onda sozinha de um filho aborrecentíssimo (meu irmão Pedro de 14 anos) e de uma chorona de 26 anos, que demorou a descobrir o que queria da vida e que hoje só está cursando Jornalismo em uma universidade particular por conta do apoio financeiro e moral da mãe e do avô, convocado há poucos meses para integrar a Academia de Letras do Céu.

Este perfil é minha forma de agradecer por tudo que ela fez e faz por mim e uma maneira de compartilhar com o mundo um pouco da artista e do ser humano que ela é – uma eterna aprendiz das maldades do mundo, talvez uma Pollyana incurável.

Foi difícil obter certo distanciamento, mas pesquisei sobre a vida dela como qualquer outro jornalista faria. Apesar de filha, eu não podia me confiar apenas nas minhas memórias e nas histórias contadas em casa. Fiquei impressionada com a quantidade de coisas que ela já fez, com o número de vídeos e referências a ela na Internet, ri de entrevistas que ela deu aos 22 anos e fiquei feliz com o seu amadurecimento. Estou cônscia da minha corujice e bajulação, sei que a neutralidade jornalística foi pro beleléu, mas o compromisso com a verdade foi mantido. Sigo aberta a críticas e mais desafios, pois sei que estou na Universidade e no mundo para APRENDER e esta foi uma oportunidade incrível de crescimento e aprendizado.

Criatura entrevistando a criadora. Foto: Davi Sampaio
Criatura entrevistando a criadora. Foto: Davi Sampaio

Texto: Camila Fernandes

[Retratos e Perfis] Nos passos de Vera Passos

Carros e mais carros chegam e saem a todos os instantes. É justamente o tráfico de automóveis na frente da Academia Vera Passos. O som da música é perceptível a partir da calçada. Logo nos primeiros instantes, a presença dominante de garotas e mulheres andando e correndo de um lado para o outro é notória. “Gabiiiii, trouxe a sapatilha?, grita uma menina ao fundo. “Mulheeeer, tá na mochila. Pega lá”, responde a outra.

Perto da recepção o papo de um grupo de amigas já é outro: “Manu, você perdeu a coreografia da aula passada”, diz uma delas. “Mas é super fácil”, diz a segunda. “Vamo (sic) ali na varanda que eu te passo tudo, mas como foi o niver da Mari?”, pergunta a terceira. “Gente, foi tudo!”, responde Manu dirigindo-se à varanda com as amigas.

– A Vera já chegou? Marquei uma entrevista com ela, digo à uma das funcionárias.
– Ah! Vera me falou da sua vinda. Mas assim, ela tá em aula agora, responde a secretária.
– Posso ver um pouco?
– Claro! É na sala logo ali na frente.
– Eu te levo lá, diz uma das alunas.

A garota estava ali observando toda a conversa. Aparentava ter seus 12 anos de idade.

– Por que a entrevista com a tia Vera?, ela me questiona e continua: Sou Amanda.
– Trabalho de faculdade, respondo.
– Eita!, surpreende-se ela.

Ao chegar na sala, há uma certa dificuldade para ficarmos mais próximos da porta. Algumas mães estão ali, observando orgulhosamente cada salto e pirueta feita por suas filhas. A aula já tinha começado há uns 15 minutos. E de acordo com Amanda, “tia Vera nunca atrasa!”.

Vera Passos durante sua aula de Jazz. Foto: Milenne Haeer.
Vera Passos durante sua aula de Jazz. Foto: Milenne Haeer.

Após os 35min de espera observando aquele local, aquelas meninas – com suas sapatilhas e aranhas (um estilo de sandália para dança) – chega a hora da entrevista com Vera Elizabeth Picanço Passos, mais conhecida como Vera Passos.

Vera se direciona a mim com um sorriso no rosto e diz: “Deixa eu sou me arrumar um pouco que tô toda descabelada. Te acalma aí”. Tia Vera me convida a entrar na sua sala para a entrevista. “Aqui não é muito grande, mas é aconchegante”, afirma.

Ah! Sobre fotos aqui no escritório, não heim! Deixa pra tirar as fotos daqui a pouco, durante a aula. É que aqui é um local mais particular.

No ambiente, com mesa de vidro e objetos bem organizados, há inúmeros cd’s. “Esses aí são apenas alguns dos quais utilizo nas minhas aulas. Tem de tudo aí. Sou quase uma DJ (risos)”, declara Vera.

Apesar de ser dona de um acervo de mais de 2500 cd’s, ela afirma ser incapaz de ouvir música quando chega estressada em casa.

“Eu não escuto música em casa porque eu já passo o dia inteiro na academia escutando música. Só vou ao meu acervo para escolher alguma música para montar as coreografias”.

Vera diz ser uma pessoa que não para quieta. “Tô aqui na entrevista, mas ao mesmo tempo tô pensando na coreografia da aula. Ah! Comigo é assim, meu filho. Minha cabeça é um turbilhão (risos)”.

Concentração na aula da tia Vera. Foto: Ícaro Paio.
Concentração na aula da tia Vera. Foto: Ícaro Paio.

Por influências familiares (já que sua mãe, Regina Passos, é a pioneira do ballet clássico em Fortaleza), ela sempre esteve próxima da dança.

“Nasci praticamente dentro de uma academia de dança. Então, seria impossível não sentir a arte de mexer o esqueleto por perto. Mas também sou muito ligada nas outras artes. Gosto muito de trabalhos manuais, adoro pintar. Já fiz até aulas de violão, menino. Tá pensando o quê!”.

Ela começou no ballet clássico e no sapateado, mas se identificou mesmo com o jazz aos 13 anos de idade. “Pronto, é aqui. Minha praia é essa”, relembra Vera. Quando era pequenina não imaginava que seguiria a profissão de bailarina.

“Era uma criança tímida e tinha medo de olhar nos olhos das pessoas, mas aos meus 14 anos eu mudei completamente minha personalidade. Acho que o Jazz me ajudou (risos). Fiquei muito determinada. Às vezes, quebramos a cara, mas é preciso aprender com os erros”.

A partir daí, Vera começou a estudar a modalidade com sua irmã, Claudia Borges, passando a ser sua assistente e, logo em seguida começou a ensinar a ‘”arte de mexer o esqueleto”. Vera passou a se envolver tanto com seu trabalho de professora que abandonou a faculdade de Pedagogia que cursava na época para poder viajar e se aperfeiçoar na dança. E foi justamente em uma dessas viagens que acabou conhecendo um dos seus incentivadores, Lennie Dale, que a apresentou a Marly Tavares, professora de dança no Rio de Janeiro.

Aos 19 anos, ela se casou e prestes a completar seus 20 anos de idade teve seu primeiro filho. Na época, ela dava oito aulas por dia para poder ter seu dinheiro e viver razoalvelmente bem.

“No início da minha carreira não queria ajuda da minha mãe. Queria me sustentar. Tenho muito orgulho de ser filha dela, mas naquela época eu queria ser reconhecida pelo meu trabalho”.

Todo o empenho no trabalho valeram a pena. São mais de 90 prêmios acumulados, sendo 60 deles com colocação em 1° lugar. Entre seus espetáculos de maiores destaques estão “Harry Potter” (2001), “Gatos” (2002), “Reino” (2008) e “Ogro” (2009) – estes três últimos inspirados nos musicais da Broadway “Cats”, “The Lion King” e “Shrek” respectivamente. Atualmente, é coreógrafa e professora de dança da academia que leva seu nome – a Academia Vera Passos – além de ser um dos principais nomes de destaque no Festival de Dança Joinville em Santa Catarina.

Confira a entrevista com Vera Passos que nos contou um pouco sobre o ‘Pano de Boca’, seu primeiro grupo de dança; a criação da Academia Vera Passos; histórias e bastidores dos espetáculos já apresentados; além de comentar sobre as dificuldades enfrentadas por grupos independentes de se manterem da dança.

Foto: Rychelme Braga.
Foto: Rychelme Braga.

Como iniciou sua careira na dança?
Nasci dentro de um academia de ballet clássico, mas não me identificava com o estilo apesar de achá-lo a base de tudo. Quando minha irmã, Claudia Borges, abriu a academia de dança moderna dela, comecei a estudar jazz com ela e me apaixonei. Me tornei sua assistente e logo em seguida assumi algumas turmas de baby class. Já em relação ao sapateado eu sou autodidata.

A partir de quando começou as viagens para estudar dança?
Eu ainda estava na academia da minha irmã quando comecei a viajar para o Rio de Janeiro. Lá, procurei Marly Tavares por intermédio do Lennie Dale. Passei a ir para o Rio todos os anos. Conheci Vilma Vernon, Tânia Nardini entre outros. Depois, comecei a ir para Nova Iorque e em 1990 abri minha própria academia.

Mas antes de fundar a academia você criou o grupo ‘Pano de Boca’, certo?
Isso. Criei o meu grupo profissional, já que a dança se tornou fundamental na minha vida. O primeiro espetáculo do ‘Pano de Boca’ foi em 1984 e pelo fato de serem meninas de 14 e 15 anos e eu com 24 anos, tentei trabalhar profissionalmente, mas o bom é que o grupo deu certo e permaneci com ele por mais 15 anos.

Foto: Arquivo pessoal.
Foto: Arquivo pessoal.

Logo veio a Academia Vera Passos. No início dava pra se manter com o lucro gerado com as aulas?
Quando comecei como professora era complicado porque dava muitas aulas, estava casada e já tinha meu filho. Não queria ajuda da minha mãe. Tinha que me sustentar sozinha.

Vivia bem, mas com a ‘grana apertada’.

Teve algumas dificuldade para montar a Academia Vera Passos?
Sim. Não tinha tantos recursos financeiros, mas tinha juntado uma quantia e a investi toda na academia. E apesar dos problemas financeiros, a maior dificuldade foi com minha irmã Cláudia porque ela ficou muito chateada comigo. Ela não admitia ter uma concorrente. Terminei meus trabalhos com ela e disse que queria seguir meu caminho. Ficamos um tempo afastadas. Não contei para ninguém que tinha saído da academia dela e quando abri minha academia metade das pessoas vieram comigo. Aí, ela ficou mais revoltada. Nunca quis ‘bater de frente com ela’, pelo contrário. Hoje em dia, somos super amigas – ela é minha madrinha – e a revolta dela foi grande porque ela me tinha como filha.

Quais as dificuldades que você percebe em relação ao cenário da dança no Ceará?
Primeiro, não temos a valorização que merecemos. O público não vai assistir aos espetáculos. Existe uma ignorância cultural em cima do Norte/Nordeste. Não é só aqui no Ceará. No Piauí e Maranhão é do mesmo jeito. Já fui ensinar lá e não há valorização. Uma grande parte das pessoas não procuram cultura. Quando os nacionalmente conhecidos estão na cidade, os eventos lotam, mas quando é o artista da terra… cadê? Meu trabalho, apesar de ser um espetáculo acadêmico – pelo fato de terem crianças e adolescentes -, tem sempre muita qualidade. Prezamos sempre pelo melhor e a cada dia estamos evoluindo. Todos nós estamos evoluindo, mas apoio não temos nenhum.

[…] não temos a valorização que merecemos. O público não vai assistir aos espetáculos. Existe uma ignorância cultural em cima do Norte/Nordeste.

Foto: Rychelme Braga.
Foto: Rychelme Braga.

Eu tento elevar tanto o meu nome quanto o nome do Ceará mundo afora e tenho conseguido. O respeito e o carinho das pessoas, principalmente em Joinville, é muito grande e gratificante.

Você leva o nome da academia de forma muito assídua ao Festival de Joinville. Como surgiu a ideia de participar de um evento de grande porte como é o de Joinville?
Todo ano minha mãe trazia alguém de fora para ajudá-la a montar os espetáculos dela. Em uma dessas visitas, veio Débora Bastos, uma profissional do ballet clássico do Rio de Janeiro. Ela viu o meu grupo ‘Pano de Boca’ e disse que eu tinha que ir para Joinville, pois lá acontecia um festival de dança maravilho. Eu não sabia da existência do festival até então, pois frequentava mais o Festival de Dança de Recife e Campina Grande. Ela me mandou os papéis de inscrição e assim eu fiz. Na época não era necessário mandar uma fita para participar do evento. Fiz milhões de espetáculos aqui para arrecadar dinheiro e levar o grupo ‘Pano de Boca’. Isso foi em 1989. Levei um jazz e um sapateado. Meu objetivo era mostrar o grupo e não ganhar. Dançamos 2 dias e assim que acabou nossa apresentação em Joinville fomos para o Festival de Dança em Campina Grande. Chegando lá, um professor que recebeu a placa por nós em Joinville nos disse que tínhamos ganho o 2° lugar no profissional de Joinville e que não teve o 1°, além disso tínhamos tirado a maior nota do Festival.

Confira a performance de “Sombras” do grupo avançado de sapateado da Academia Vera Passos. O número tirou 1° lugar na categoria ‘Avançado – Sapateado Conjunto’ no 27° Festival de Dança de Joinville (2009).

E a competição nível internacional no ‘I Love Dance’ nos Estados Unidos?
Essa foi outra ousadia minha. Tínhamos ganho o 1° lugar em Joinville e todos comentavam sobre a boa qualidade dos meus espetáculos. Uma professora de dança de São Paulo me enviou a papelada, entrei em contato com a representante lá em Nova Iorque e inscrevi uma galera da Academia Vera Passos. O ‘Pano de Boca’ foi também. Levei no total 60 pessoas. O festival aconteceu em Orlando durante 7 dias no ano de 1995. O ‘Pano de Boca’ tirou 1° lugar no contemporâneo e a Academia levou o 1° lugar tanto no sapateado sênior e júnior quanto no jazz sênior e júnior. Além disso, ganhei a maior nota no sapateado e a Lucinha (Lúcia Machado é uma das diretoras da Academia Vera Passos) recebeu a maior nota no jazz. Em 1996, o festival aconteceu em Nova Iorque e levei sete coreografias. Das sete,seis foram 1°’s lugares e uma 2° lugar. Já em 1998, a competição foi em Orlando. Levei duas coreografias e ambas tiraram 1° lugar. Foi aí que fomos convidados para dançar na Disney, no Magic Kingdom, mas não dançamos porque a apresentação era dois dias depois da passagem de retorno e não tínhamos como trocar as passagens de todos.

Como se sente com a responsabilidade de levar além de seu nome, o nome do Ceará para o Brasil e para o exterior?
É uma pressão. Eu tento elevar tanto o meu nome quanto o nome do Ceará mundo afora e tenho conseguido. O respeito e o carinho das pessoas, principalmente em Joinville, é muito grande e gratificante.

Existem histórias de ensaios em lugares inusitados, como em garagem e corredores. Como é isso?
Ah, meu filho! Nos festivais não podemos dormir no ponto. Lá, temos dificuldade de encontrar lugares para ensaiar porque somos um grupo grande. Aí, onde encontramos um ‘chãozinho’… acontece o ensaio. Já ocupamos garagem de hotel com chão de cimento. E até dentro dos quartos já ensaiamos, afastamos as camas e passamos a coreografia (risos).

Ensaio na garagem, Festival Joinville 2008. Foto: Marília Recamonde.
Ensaio na garagem, Festival Joinville 2008. Foto: Marília Recamonde.

Texto: Ícaro Paio

[Retratos e perfis] Em nome do padre: 38anos de perseverança e coragem no Ceará

padre-ferreirinhaNão foi nada fácil encontrá-lo pessoalmente. Gastamos alguns dias de paciência e disposição para, finalmente, conseguirmos uma entrevista (rápida, diga-se de passagem), com Manoel Ferreira. Padre Ferreira para uns, Ferreirinha para outros tantos.

O encontro aconteceu no dia 01 de novembro, às oito horas de uma manhã ensolarada, na Igreja Santa Edwiges, templo idealizado e construído por ele. Ferreira exigiu pontualidade. “Às oito e dez já não falo mais nada”.

Foram poucos os minutos, porém, bastante proveitosos. Como esperado, o pároco tinha muito o que contar, afinal, são 80 anos da história de um dos Padres mais influentes do estado do Ceará.

Enfim, entendemos sua suposta rispidez ao exigir nossa pontualidade. Pouco tempo nos direcionando exclusiva atenção foi o suficiente para abalar a tranquilidade do local. A atenção do pároco ficou dividida entre nós e as várias solicitações de pessoas da igreja.

Enfim, tivemos de nos render. Ao final do encontro, ainda cheias de perguntas, fomos obrigadas a respeitar sua pouca disponibilidade. Ficamos mais tranquilas quando ele disse “tem muita coisa sobre mim espalhada por ai, muita gente que me conhece. Já tem imagem minha, não tem? Então podem ir, vocês já tem o suficiente”.

História

Por conta dos vários desencontros que tivemos para conseguirmos algum depoimento do Padre Ferreirinha pessoalmente, acabamos acompanhando-o de longe, por telefone ou por relatos de terceiros, já que seus compromissos inadiáveis e de última hora sempre o proibiam de disponibilizar algum tempo para nós, mesmo quando combinávamos previamente.

Percebemos nele uma personalidade firme, cheia de disposição. Vê-lo pessoalmente só reiterou tudo isso. Um homem, que, apesar da longa e cansativa estrada já percorrida neste mundo, é vívido e cheio de planos.

Filho do Nordeste, nasceu em 23 de maio de 1932, num lugarejo chamado Baixias, no interior da Bahia. Uma região conhecida por judiar seus moradores, comumente vitimados por longos períodos de seca e escassez de alimentos. Porém, sempre abençoado por Deus, como ele mesmo costuma afirmar, foi criado em uma família precavida, que “visava o futuro”. Assim, nas terras de seus pais, José Coelho de Castro e Balbina Ferreira de Castro, havia um açude e um poço profundo, tesouros que garantiam à sua família uma vida menos atribulada e sofrida pela falta de chuva.

O menino Manoel viveu uma infância feliz. Em meio aos banhos de açude, corridas de cavalo de pau e passeios no lombo de jumentos, ele e seus 16 irmãos, sendo três deles adotivos, eram orientados a seguir a doutrina Cristã Católica. Aos finais de semana, rezavam o terço e ouviam trechos das Escrituras Sagradas da boca de seu pai. Uma vez por ano, seus pais o levavam para a famosa novena de Santa Filomena, num vilarejo próximo ao local onde morava. Essa rotina, para orgulho de seus pais, acabou formando dois padres, ele e seu irmão José, e duas irmãs salesianas, Donatila e Rosa.

Em 1949, Manoel Ferreira, já com 17 anos, deixa a casa dos pais para concluir o Curso Primário, na Capital. Muda-se para Recife (PE), para concluir o Ginasial. Estuda Filosofia em Natal (RN) e Teologia em São Paulo (SP), onde se ordena Diácono.

Em 1968, o destino faz com que Manoel Ferreira, já com 36 anos, retorne à sua região Natal, onde foi ordenado padre, na Catedral de Petrolina, em Pernambuco. Porém, é o Ceará o grande destino daquele jovem padre, que encontrou ali acolhida e o rebanho que Deus havia predestinado para receber dele seus conselhos e cuidados.

No Ceará, cursou as faculdades de Letras, Pedagogia e História, além de cursos de especialização e outras formações, que auxiliaram no seu desempenho como pároco. Na década de 70, quando já havia fincado raízes sólidas no Ceará, depara-se com aquilo que o ajudou a tornar-se um dos maiores nomes da fé católica no Estado. Por intermédio de Dom Aloísio Lorsheider, o então Arcebispo de Fortaleza, Padre Ferreirinha conhece a Igreja do Patrocínio.

O Templo abandonado

A Igreja do Patrocínio foi o primeiro local onde minha amiga e eu tentamos contato com Padre Ferreirinha. Tentativa frustrada, como já relatei. Marcamos com ele às três da tarde, mas ele não estava lá. Acabamos conversando com Leocádia, sobrinha e ajudante de Ferreirinha nos afazeres da igreja. Muito simpática, ela nos contou que o vigário teve um compromisso de última hora e que a “missa das três” seria celebrada por outro padre.

Localizada no Centro de Fortaleza, a Igreja do Patrocínio fica próximo à movimentada Praça José de Alencar, com vista privilegiada para o famoso Teatro que também recebe o nome do renomado escritor cearense. Atualmente, o templo é marca registrada no local, muito bem conservado, recebendo semanalmente centenas de fiéis que fazem questões ir até lá e ouvir os sermões do Padre Ferreirinha.

Uma realidade que em nada condiz com o estado desta mesma igreja na década de 70. Totalmente destruída física e religiosamente, o templo estava literalmente abandonado. Padre Ferreira então decide mudar a realidade do local, de uma forma não muito tradicional, mas que surtiu os efeitos que ele tanto desejava.

Para manter a ordem, Padre Ferreirinha acaba tomando decisões extremas. Assim como Jesus destruiu as tendas de vendilhões que comerciavam em frente ao templo sagrado em seu tempo, conforme relatado na Bíblia, Ferreira também encontra uma maneira de repelir todos aqueles que, de alguma forma, “dessacralizavam” a sua igreja. Um gradil foi instalado ao redor do templo e, munido com um revólver calibre 38, o pároco amedrontava. “Eu não ia atirar em ninguém, mas a arma impõe respeito. E a igreja tem que ser respeitada”, dizia.

Assim, Manoel Ferreira ganhou fama. Grande padre, grande líder e grande defensor. Como afirmou o Padre José Teles Arruda no ano de 1982, em entrevista ao jornal A Verdade, de Baturité, “até hoje, durante meus 51 anos de sacerdote, nunca encontrei uma paróquia tão bem organizada e à gosto dos fiéis como a Igreja do Patrocínio”.

Seu comportamento sério e destemido rendeu-lhe homenagens e condecorações. O sacerdote foi elogiado por Dom Aloísio, suas missas passaram a ser televisionadas e seus feitos espalharam-se por diversos jornais nordestinos. Em 1984, teve o privilégio de participar de um retiro mundial de sacerdotes, no Vaticano, com a presença do então Papa Paulo VI, onde apenas 350 párocos brasileiros tiveram a honra de estarem presentes.

Reformar igrejas abandonadas e assistir comunidades de risco e vulnerabilidade social tornou-se rotina para o Padre Ferreirinha. Criou creches, escolas profissionalizantes, cursos, salões de beleza. “A minha missão não é só pregar a palavra, mas cuidar dos pobres como fez Cristo”, salientava.

Talvez, para ele, todos esses grandes trabalhos ainda não satisfaziam seu ego e sua a boa vontade. Ideias de um projeto mais audacioso, de maior magnitude, começaram a se desenhar na mente de Ferreira. A ideia criou forma e chamou-se Igreja de Santa Edwiges.

Novo desafio

A igreja de Santa Edwiges, como já dito no começo desta narrativa, foi o local onde conseguimos, enfim, trocar algumas palavras com Padre Ferreirinha. Um local privilegiado por possuir uma belíssima vista para o mar e, como alguns costumam dizer, por ser administrada por um grande chefe.

Um homem, no mínimo, exemplo de persistência. Batalhou muito para concretizar a Igreja de Santa Edwiges, um de seus projetos mais desejados. Foram insistentes oito anos para conseguir um alvará que permitia a construção do templo, além das várias visitas à prefeitura de Fortaleza, nos anos em que Maria Luiza e Ciro Gomes geriam o município.

A igreja foi construída e, junto dela, o “Altar do Novo Milênio”, um espaço anexo da Igreja Santa Edwiges. “Um lugar maior, ambiente acolhedor, de muita interioridade e em profunda sintonia com a suave brisa que vem do oceano, reflexo da grandeza de Deus”, conforme Padre Ferreira deixou registrado em uma espécie de cartão-postal contendo a imagem do local.

Recentemente, foi construída uma imagem de Santa Edwiges ao lado da igreja, que gerou discussões e desentendimentos entre os fiéis e o Ministério Público Federal. A imagem foi acusada de ferir a nação laica, segundo Padre Ferreirinha. “Antes de destruir a minha estátua, destruam o Cristo Redentor”, completou.

Despedida

Enfim, a imagem continuará lá, intacta. Padre Ferreirinha não. No dia 31 de dezembro deste ano, ele dá adeus a suas atividades paroquiais nas duas igrejas que tanto amou e ajudou a edificar. Aos 80 anos, disse que precisa descansar e cuidar da saúde.

Muito querido e, também muito criticado. Ele afirma que já foi acusado de ter uma amante e de ser “beberrão”, “além de muitas pessoas me acusarem de ser proprietário de helicóptero e ter uma grande fazenda na cidade de Pacajus. Tudo isso foi desmentido pelo tempo”, disse.

Em comemoração ao seu 80° aniversário e em despedida oficial das paróquias, padre Ferreirinha realizou uma missa na Igreja de Santa Edwiges, no dia 23 de maio. Compareceram cerca de 100 bispos e padres, além de seus vários fiéis e seguidores.

Como 38 anos à frente da Paróquia Nossa Senhora do Patrocínio e 18 da Capela Santa Edwiges, Manoel Ferreira soube conduzir com maestria todas os desafios nos quais teve participação. Não haverá adeus nos corações daqueles que sempre irão lembrar de sua trajetória.
Padre Ferreirinha

De onde o senhor acredita ter vindo a vocação sacerdotal?

A vocação é de família. São dois padres e duas freiras, ou seja, a família já é vocacional. Saí de casa para estudar e me aprofundar e quando já ordenado vim aqui pro Ceará.

Como foi a primeira impressão que o senhor teve da Igreja do Patrocínio aqui no Ceará?

Era uma igreja abandonada, que nenhum padre queria. No centro da cidade e abandonada. Só tinha uma missa, às 17hrs. A igreja ficava fechada o dia todo.

O que o senhor acredita ter trazido de bom para a Igreja do Patrocínio?

As missas diárias. Nós passamos a ter dez missas diárias, coisa que não acontece em nenhum lugar do mundo. São 38 anos sendo pároco lá e nós damos a assistência que nenhuma outra igreja oferece. Muitas igrejas fecham nas segundas feiras. Eu nunca fechei a nossa, ela é sempre aberta, de domingo a domingo.

Como se deu a implantação da Capela de Santa Edwirges?

Santa Edwirges é um monumento que ninguém queria fazer pela oposição que tinha de todos os órgãos. A gente venceu todos esses órgãos e obstáculos e está aí o monumento. É um monumento para o mundo porque as pessoas se hospedam no Hotel Marina Park e vêm assistir à missa. São pessoas de todas as partes do mundo.

E como é o funcionamento da Capela de Santa Edwirges? Segue o exemplo da Igreja do Patrocínio?

Nós temos as missas nas quintas feiras, às 8hrs da manhã, às 16hrs e às 19hrs. Aos sábados a missa acontece às 13hrs e no domingo às 9h30m, às 11hrs, às 17h30m e às 19hrs, com mais de duas mil pessoas. Nenhuma igreja tem uma multidão dessa. Além disso, assim como a Igreja do Patrocínio, ela é aberta o dia todo. Quem chega, pode estacionar o carro e rezar.

Muitos julgaram o senhor pela sua atitude em defender a Igreja do Patrocínio com uma arma. O que o senhor tem a falar a respeito desse episódio?

Eu digo que vocês esqueceram que o criador foi salvar os judeus e matou todos os egípcios mergulhados no mar. O criador fez isso. Então para mim, a solução foi essa e deu jeito. A arma não era pra matar ninguém mas ela, por si mesma, impõe respeito. Hoje a Igreja é pacífica e os fiéis vão rezar sem medo. Hoje a Igreja é respeitada e a mais freqüentada de Fortaleza.

O senhor anunciou a sua despedida em breve. Alguma razão importante para a decisão de se aposentar?

Pela saúde, já estou com 80 anos. Desde os 75 anos é para eu entregar. Foram muitos anos sendo pároco das duas igrejas, já fiz, agora pronto. Vou cuidar da minha saúde para mais viver!

Texto: Raynna Benevides e Kamyla Lima.